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Conversas à Mesa

O pastel de nata à colherzinha

 

 

 

 

Quando eu era criança, bem sei que foi poucos anos depois do fim da II Guerra Mundial, era absolutamente proibido deixar comida no prato. E por comida entenda-se qualquer migalha. Quando a comida não nos agradava muito, os nossos olhos imploravam misericórdia, à mãe ou a quem nos estava a dar de comer, para que não pusessem muita, pois sabíamos de antemão que teríamos de a engolir. Alguns anos passados, já na adolescência, uma das coisas que sempre me impressionou nos filmes americanos era a quantidade de comida que toda a gente deixava nos pratos e a qualquer refeição.
















 


Todos estes pratos são de restos deixados ao pequeno-almoço num diner de Manhattan, Nova Iorque, embora alguns quase pareçam intocados. Deixar comida no prato faz-me tanta impressão que não resisti a tirar estas fotos de várias mesas ao longo de um pequeno-almoço.

 






O desperdício sempre me fez confusão e impressiona-me actualmente o desperdício que gira em torno da alimentação infantil. Nos últimos anos temos assistido ao aumento da obesidade nas crianças para níveis preocupantes. Fala-se muito disso mas faz-se pouco. Tantas crianças que vejo comprar um pão doce com chocolate industrial e um refrigerante ou uma cola e um pacote de snacks para o pequeno-almoço antes de entrarem para a escola. Bom, mas hoje não é da alimentação na escola que vos quero falar, mas sim do abuso de açúcar associado a um flagrante exemplo de desperdício.

Quando vejo os pais pedirem ao pequeno-almoço um pastel de nata e uma colher, já não consigo desligar e fico a olhar fixamente os movimentos da colherzinha que vai à boca apenas com o creme do recheio, esvaziando rapidamente a parte exterior do folhado, que acaba no lixo. Este meu empreendimento é o chamado dois em um: primeiro porque é desaconselhável dar açúcar ao pequeno-almoço a uma criança, segundo porque esta lição de desperdício de comida é inadmissível, sobretudo nos tempos que vão correndo.  Mas quando eu pensava que o pastel de nata comido a colher era a epítome do desperdício infantil,  eis que me confronto há dois ou três dias com o inacreditável caso da bola de Berlim. A história é esta e passou-se na mesa ao lado da minha numa pastelaria de aldeia: avó, mãe e neta de pouco mais de 1 ano, vem um bolo de arroz, a criança recusa, avó levanta-se e vai buscar bola de Berlim, que a criança recusa, condescendendo em comer à colherzinha apenas aquele creme amarelo que imita os ovos. Para o lixo ficaram em cima da mesa, o bolo de arroz e a a bola de Berlim, menos o creme. Há que convir... 

 

Celebrou-se esta semana o dia mundial contra o desperdício, tema que sera retomado pela Europa no ano de 2014.

O casulinho de Cascais

Quem me diria quando entrei na praça de Cascais num Domingo atraída pelo Mercado Epicur que iria ter uma surpresa tão curiosa que dá pelo nome de casulinho. O nome ternurento advém-lhe da sua semelhança com a casinha entretecida das borboletas. Tal como o casulo, este doce inspirado em versões do Médio (Turquia) e do longínquo Oriente (Coreia e China), é uma obra de paciência e persistência .




O anel com que tudo começa.




 

O Pedro e o Vítor, criadores do casulinho.





Foi trazido para Portugal e recriado pelo Pedro e pelo Vítor,  o primeiro de Lisboa, o segundo de Cascais, que com toda a paciência e depois de inúmeros ensaios chegaram a este casulinho que faz parar o povo como eu junto do carrinho com que correm as feiras.

Vamos lá ao principio. O casulinho é feito a partir de uma espécie de pulseira, da qual tem a forma e o tamanho, com açúcar e mel de rosmaninho da serra da Portela. Estas pulseiras já vêm feitas e a partir delas começa a magia: cada uma é trabalhada e esticada usando o calor das mãos e amido de milho ou farinha de arroz até ficar pronta para ser dobrada. O verdadeiro milagre acontece quando começam as dobragens em número de treze, que produzem no final 16 000 fios completamente separados, tão finos quanto fibra óptica que fazem lembrar, mas muito macios. Ver para crer.



A meada já com milhares de fios.




Os fios necessários para um casulinho já cortados.



Esta então entretecido o casulinho que vai ser montado em dois pauzinhos e recheado com amendoim ou amêndoa raladas, chocolate, e o que a imaginação ditar nesse dia.


 

O casulinho a ser recheado. 



 

 O casulinho a ser enrolado.







A que sabe? Quando se mete na boca, o casulinho oferece alguma resistência passiva ao dente, paralelos se ir derretendo na boca e soltando o sabor do mel e do recheio. Uma experiência diferente que lhes aconselho caso encontrem o carrinho do Casulinho do Confeito Aqui na feira de Cascais ou outra. Ainda há gente disposta a criar e a inovar. Parabéns ao Pedro e ao Vítor. 





Os fios são tão finos que são visíveis os efeitos da electricidade estática. 


 

 A marca.


Vincent Farges, premiado pela AIG

 

Vincent Farges, chef do Fortaleza do Guincho, é um homem tranquilo e um magnífico cozinheiro. Tenho por ele grande admiração. Fiquei felicíssima com a atribuição do prémio de Chef de l'Avenir pela Academia Internacional de gastronomia. Parabéns Vincent. 
Os outros chefs distinguidos foram JordiCruz, ABAC, Barcelona, Antone Bonnet, Sergent Récruteur, Paris e Magnus Nilsson, Faviken Magasinet, Jarpen (Suécia). 
Parabéns a um outro português distinguido no campo das Ciências da Alimentação, o Professor Doutor José Amorim Cruz. Na Literatura gastronómica o prémio foi para o grande Massimo Montanari, pela sua imprescendível obra em redor da História da Alimentação. 

Nadar em cardume com sangue na guelra

 

Quando o jantar acabou, já não me lembrava que eles tinham sido apresentados como os braços direitos, os segundos, de três conhecidos chefes. Quando me levantei da mesa, apenas me lembrava que tinha comido uma refeição original, equilibrada e com pratos muito interessantes pelo caminho.




 

O lingueirão minimalista de David de Jesus abriu a refeição



Os responsáveis já não são garotos, embora tenham sangue na guelra: David de Jesus (Belcanto), Matteo Ferrantino (Vila Joya), Yoji Tokuyoshi (Osteria Francescana) foram os criadores de três pratos cada um, suficientes para tornar visível a sua identidade apenas com esta trilogias. O jantar, todo em pratos de peixe e marisco devido à parceria com o Peixe em Lisboa, mostrou-se um discurso com lógica do princípio ao fim e revelou muito trabalho de bastidores entre os três, para o qual também contribuiu a boa harmonização com os vinhos da José Maria da Fonseca. A ideia genial ficou a dever-se à parceria Ana Músico/Paulo Barata, a quem dou os meus parabéns pela iniciativa e pela maneira suave, mas eficaz, como se posicionam no mundo da gastronomia.

Para começar, tivemos um brinde do Pedro Bastos, da renomada empresa de comercialização de pescado Nutrifresco, que com o seu imenso saber e facilidade em comunicar nos deu uma boa lição sobre o tema.

Não vou alongar-me muito sobre os pratos. Em meia dúzia de linhas vou dizer qual foi o meu Top 3 e porquê.

Em termos de surpresa e de estética, gostei muito do “Salada do mar”, do japonês Yoji Tokuyoshi. Baseado num trompe le goût, os legumes da salada tinham belíssimas formas de peixes e marisco (recortadas com formas metálicas que foram mostradas à mesa), a lembrar os finíssimos recortes de papel chineses. As maioneses de diversas cores, essas eram feitas de peixe e marisco triturados e com um incrível sabor a mar.




 

Salada do mar de Yoji Tokuyoshi (Osteria Francescana)





Em termos de sabor e combinação harmoniosa de vários ingredientes, gostei muito do “Lírio, couve-flor e caviar” pela grande e harmónica diversidade de sabores (desde o pudinzinho de chá verde com wasabi até às diferentes lâminas de couve-flor, passando por esse magnífico peixe capturado nos Açores, o lírio, e pelo caviar). O seu criador foi Matteo Ferrantino.




 

Lírio, couve-flor e caviar de Matteo Ferrantini (Vila Joya)





David de Jesus apresentou “Navalheira azul com creme de caril” que eu elejo pelo equilíbrio justo, sem que o caril se sobrepusesse ao caranguejo, antes lhe soubesse ir buscar todas as suas nuances. E pelo facto de David ter ido buscar as suas raízes de uma forma tão bem conseguida. E talvez também porque essas raízes também fizeram parte do meu crescimento sempre partilhado com primos goeses.



 

 

 



 

David de Jesus termina o seu prato "Navalheira Azul com creme de caril"



Bom há um quarto prato, um que não veio ao encontro do meu gosto mas que me fez pensar. Chamava-se “Chá verde com peixe fumado” e consistiu basicamente num molhinho de legumes e frutos crus, todos verdes, sobre os quais Tokuyoshi verteu à mesa um caldo salgado que supostamente amoleceria as ditas crudités, cujo sabor profundamente amargo em nada beneficiou com a infusão. Forcei-me a comer este prato, que contrariava a cada colherada as minhas papilas gustativas, dizendo para mim mesma: “Será que devemos insistir em comer aquilo que não gostamos para educarmos o palato, tal como me aconteceu com a leitura do Moby Dick, de Herman Melville? Será que faz bem e educa o nosso sentido do gosto? Bom, eu diria que este quarto prato foi encarado como o prato educativo, o meu Moby Dick. Posso garantir-vos que ficou profundamente marcado na minha memória gustativa.


 

 



 

Eu e o “Chá verde com peixe fumado”.  Yoji Tokuyoshi verte o caldo sobre os legumes crus numa malga recoberta de essência de clorofila






Porém, deixei para o fim aquilo que verdadeiramente me impressionou: o sentido de colaboração e de entreajuda que se assistiu na cozinha entre três homens que não trabalham juntos e que mal ou não se conheciam.  Vi-os juntos a acabarem os pratos uns dos outros, a trocarem impressões, a darem o litro, a beberam uma cervejola e a darem risadas em língua nenhuma enquanto descontraíam. E que belo exemplo de como se deve trabalhar em colectivo deram aos alunos da Escola Hoteleira de Lisboa, que na cozinha e na sala fizeram o apoio ao evento.





 

 






 

 





 

 




O trabalho do pessoal de mesa (o expressivo Enrico Vignoli, da Osteria, e o eficaz e cortês Paulo Luz, do Vila Joya, por exemplo) também foi notável, enquadrando os alunos da escola. O ritmo esteve bom e descontraído, mas sempre profissional, apesar de a refeição de 11 pratos ter sido demasiado longa.




Paulo Luz com Matteo Ferrantini



Uma palavra final para as levíssimas e lindíssimas sobremesas inspiradas no mar de Christina Shaffenacker, do restaurante Ocean: deslumbrantes em tons de laranja.



 

 

 

 

 

 

Christina Schaffenacker, pasteleira do Ocean, Vila Vita




A maioria das fotos foram tiradas pelo Miguel Andrade, que esteve sempre atento à cozinha. Obrigada Miguel.





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