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Conversas à Mesa

O PRIMEIRO BUCHO RAIANO

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Cada vez me apercebo mais que a região das Beiras tem vindo a ser desvalorizada em termos gastronómicos. Uma dessas razões é a existência do bucho raiano, que consider superior ao butelo transmontano, também pela falta de cuidado com que este é atualmente comercializado.

O bucho raiano faz-se na raia sabugalense, em redor do rio Côa. É primo do butelo transmontano e de outros butielos do lado de lá da fronteira, todos eles exemplos do aproveitamento total do porquinho.

Estamos já no Outono e Outubro já é boa altura para o comer. Eu tive a sorte de ser convidada por amigos com origem no Soito para inaugurar a época buchenta.

Pela parte de fora, o bucho raiano é um estômago, palaio (intestino grosso) ou bexiga, que se recheia com as sobras dos enchidos nobres, sobretudo da cabeça, sendo bem visível a orelha, previamente temperadas com a habitual vinha de alhos. Os que eu comi estavam particularmente bem temperados, sem excessos de alho nem de colorau. O tamanho era o ideal, ao contrário dos butelos transmontanos, cuja generalidade hoje permanece demasiado grande e mal temperada, devido a uma grande recusa da mudança.

Levaram fumagem ligeira, nada de sobrecarga do fumo no sabor.

Enfim, estavam muito bem cozidos, levaram três horas de fervura lenta, bem envolvidos em saquinhos de pano atados. Ao lado, os habituais batatas cozidas e grelos.

Para beber, estivemos muito bem, graças a outro amigo que trouxe o vinho: Barão de Nelas Reserva de 2008. Um Dão que fez um casamento de amor com o bucho. Obrigada à Luísa, que me mimoseou com os dois.

 

 

O bucho e o queijo foram comprados nas Delícias da Quinta – Soito/Sabugal

 

 

 

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Um grande companheiro do Dão.  

 

 

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 Os buchos ensacadinhos a cozerem, a retirar-se o saco e depois de desensacados.

 

 

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 O belíssimo queijo de cabra também é das Delícias da Quinta

 

 

 

RIBATEJO NO TIVOLI COM RODRIGO CASTELO

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Está a decorrer até ao dia 26 de Setembro no restaurante Terraço do Tivoli a quinta etapa do Portugal de Norte a Sul, por conta do Ribatejo. Este evento é mais uma vez organizado por mim. 

Promover as cozinhas regionais, faz para mim todo o sentido porque é nas regiões que a cozinha é um verdadeiro e espontâneo acto cultural, porque é nas regiões que ela se relaciona com os produtos locais e com os hábitos dos povos que nelas habitam. Na minha opinião, faz sentido falar em cozinha regional versus cozinha nacional, versus terroirs. E faz sentido quando se traz uma cozinha regional trazer o resto da história, desde os produtores, até às danças, aos objectos de culto e por aí adiante, porque a cozinha é apenas uma parte dela. Trazer as cozinhas regionais à grande cidade é, no fundo, voltar a pôr em cena a velha tensão entre o campo e a cidade.

 

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A inauguração do evento teve a presença do Grupo Académico de Danças Ribatejanas, de Santarém, capitaneado por Ludgero Mendes, que nos contou histórias muito interessantes sobre a região.

 

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O momento do fandango, talvez a minha dança favorita, que aprendi ser originário da Galiza. 

 

Temos cozinhas regionais muito ricas e diversas, mas há duas regiões que há muito vêm sendo menorizadas, muitas vezes por motivos alheios ao valor da própria cozinha. São elas as Beiras e o Ribatejo. Eu devo confessar um fraquinho pelo Ribatejo. Tenho uma admiração especial por mulheres minhotas e homens ribatejanos. Um ribatejano de bota de salto de prateleira e suíças é de cair para o lado. Um ribatejano que cozinha como o nosso convidado ribatejano, o Rodrigo Castelo, é de cair para o lado.

 

 

 

 

 

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Torricado de bacalhau, perninhas de codorniz com amêndoa e sopa de peixe do rio

 

 

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Os imperdíveis croquetes de rabo de toiro 

 

 

 

 

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Tártaro de peixe e marisco do rio com crocante de camarinha

 

 

O Ribatejo inclui no seu nome o de um rio, o Tejo, que é a estrada geográfica que nesta região delineia culturas, nomeadamente as gastronômicas, e espalha riqueza. O rio é a borda-d’água, para um lado a charneca, para outro o bairro. Através do seu movimento de avanço e recuo, as cheias, o rio condiciona as riquezas da lezíria, como o gado, bovino e equino, o arroz e os cereais, do bairro, com as vinhas do Cartaxo e os olivais.

A maneira como os ribatejanos tratam o peixe do rio é notável, provavelmente por influência dos avieiros, homens e mulheres que vinham da região costeira de Vieira de Leiria, da foz Liz, para trabalhar nas lezírias. A mestria no preparo do peixe do rio é uma característica muito visível na cozinha do Rodrigo Castelo, o cozinheiro escalabitano responsável por representar o Ribatejo.

O Rodrigo é natural de Santarém e a sua formação foi em engenharia de produção animal. O facto de ser aficcionado e ter sido forcado levou-o a cozinhar nas tertúlias, onde ganhou a mão petisqueira e o domínio das tradições. Abriu há dois anos a Taberna Ó Balcão, em Santarém, e está ainda à frente de uma banca no mercado de Algés, o Peixe Ó Balcão. Rodrigo Castelo, com a sua cozinha de sabores, é atualmente um dos meus cozinheiros favoritos.

Durante os próximos dias, Rodrigo vai estar no Terraço do Tivoli a mimosear-nos com a sua característica cozinha baseada numa abordagem pessoal das tradições do Ribatejo. Ele é mestre a trabalhar os peixes e o marisco do rio, aos quais incute milagrosamente sabores marinhos. Para o provar estão pratos como a sopa de peixes do rio com ovas, o tártaro de peixe e marisco do rio e os filetes de fataça com arroz de berbigão do rio.

 

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Filetes de fataça com arroz de berbigão do rio

 

 

 

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Lombeta de touro, um corte pouco usado desta carne

 

 

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Gelado de melão com molho de pimento

 

 

A título de exemplo deixo-vos aqui uma análise de um dos pratos que mais gostei, o tártaro, pelo sabor e também pela maneira como Rodrigo conseguiu incorporar três elementos tradicionais da borda-d’água de uma forma original.

A base é uma mistura de dois peixes do rio, o lúcio-perca e a fataça. A estes juntam-se os lagostins do rio e a camarinha, incorporada num delicioso crocante. É um prato a não perder.

Em relação ao toiro bravo, não deixem de comer os croquetes de rabo de toiro do couvert.

Rodrigo trabalha muito bem a carne de touro, à qual empresta formato moderno sem desvirtuar. Tem um cuidado extremo com a escolha de produtos e fornecedores e uma paixão por estar metido na cozinha, em permanente processo criativo, ou em falatório com as gentes, investigando tradições.

De sobremesas, o refrescante gelado de melão com molho de pimento em cestinha crocante, a celeste em tarte e o arrepiado com coulis de frutos silvestres.

A completar a ementa, vinhos da Adega Cooperativa do Cartaxo, harmonizados com os diversos pratos.

Não percam o Rodrigo Castelo no Tivoli. Para quem não conhece, é uma surpresa emocionante. 

Para mais informação sobre o Rodrigo Castelo, ver também no blog

Taberna Ó Balcão

e

Peixe Ó Balcão

 

 

Para quem tiver curiosidade de econhecer a camarinha ver aqui (onde fui buscar esta foto):

http://brancopesca.blogspot.pt/2012/05/camarinha-uma-isca-extraordinaria.html

 

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OVOS MEXIDOS PERFEITOS E JÚLIO CÉSAR MACHADO

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De médico, de cozinheiro, de crítico gastronómico e de louco, todos temos um pouco. Quem é que não tem sempre «a melhor receita de...» ou «conhece o sítio onde se come o melhor...». Mas não é coisa de hoje. Os intelectuais do século XIX adoravam meter-se na cozinha, de casa e dos restaurantes, para também ali mostrarem a sua criatividade.

De tal forma esta atividade era intensa que um dos livros de cozinha mais populares da época, o Cozinheiro dos Cozinheiros, está recheado de receitas de intelectuais cozinheiros, como Bulhão Pato, Ramalho Ortigão e Júlio César Machado, de quem hoje vamos falar. A receita com que o escritor colabora no livro citado é de uma caldeirada que tem a actualidade do tempo de confecção proposto para o peixe e moluscos: cinco minutos, numa época em que ainda se coziam lagostas durante 1 hora.

No jornal O cronista de 05/05/1956, Alfredo de Morais, o primeiro grande crítico de gastronomia português, uma espécie do nosso Curnonski, escreveu sobre Júlio César Machado e deu a receita de um prato simples e muito bom que teria sido feito em sua casa, os ovos mexidos perfeitos.

Hoje Júlio César Machado talvez seja mais conhecido pela fotografia em que aparece paramentado de cozinheiro do que pela sua actividade de escritor e folhetinista/cronista e é pena. Nascido no concelho do Bombarral em 1835, era descrito pelos seus contemporâneos como homem de bom coração e grande disposição. À época, importáramos a moda francesa do folhetim/crónica, um cruzamento entre jornalismo e literatura, que deu de comer a muito boa gente, tão boa quanto Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. JCM folhetinou sobretudo em redor do teatro, primeiro em A Revolução de Setembro, depois no Diário de notícias, dedicando-se à actividade teatral de Lisboa em meados de oitocentos.

Dele disse Camilo Castelo Branco: «Júlio César Machado tinha a clara e fluente linguagem que o género requer; tinha ironias e remoques comedidos, como a cortesania manda; realçava no bem discernir o quilate das óperas cantadas, do cantor louvável, e do actor inteligente; achava de pronto as finas pedras do livro novo e assoprava mui delicadamente o cisco em que se deslapidavam, de jeito e modo que não fosse incomodar os olhos do autor. Estes felizes atributos deram ao folhetinista de diversos jornais um bem ganhado e soado nome».

JCM suicidou-se após o suicídio do filho e pouco antes do de Camilo Castelo Branco.

 

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Aqui fica a receita citada por Alfredo de Morais dos ovos mexidos perfeitos, confeccionados por JCM para o barão de Roussado.

 

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Desde que conheci esta receita, nunca faço os ovos mexidos de outra maneira. A cremosidade que lhe empresta a manteiga é bem melhor do que as habituais natas ou leite. Acrescento eu da minha lavra à receita: o segredo para uns ovos mais cremosos está em pender para as gemas.

 

A receita que fiz

Para 1 pessoa: 2 ovos e uma gema. Coloco uma colher rasa de manteiga amolecida na tigela, junto os ovos e bato tudo junto com um garfo. No fim, uma pitada de sal. Unto a frigideira com manteiga e levo a lume esperto. Quando estiver quente, deito os ovos. Deixo prender um pouco sem lhes tocar. Depois mexo com uma espátula. Sessenta a 90 segundos depois, tiram-se do lume, mexem-se uns segundos pelo caminho para o prato e deitam-se de imediato. Polvilham-se com pimenta preta e devoram-se. São perfeitos.

 

 

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Dois ovos inteiros e uma gema

 

 

 

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O momento exacto para tirar a frigideira do lume

 

 

 

 

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E novamente os ovos mexidos de Júlio César Machado 

 

 

 

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