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Conversas à Mesa

SANTA E REAL MARMELADA BRANCA

 

 

tabuleiro de marmelada

 

Era a que se fazia no Mosteiro de Odivelas, pelas mãos de certas freiras bernardas cuja mais conhecida e devassa madre superior se chamou Paula e foi amante do rei do ouro brasileiro, Dom João V, de quem chegou a ter, pelo menos, um filho. A venda da marmelada branca poderá ajudado à sobrevivência das últimas freiras de Odivelas, após a Revolução Liberal ter acabado com as ordens religiosas. Em 1886, o Diário de Notícias dava fé da miséria que se vivia no convento e fazia um apelo à caridade pública para ajudar à sobrevivência das últimas freiras. Seria nesse mesmo ano que morreria a ultima abadessa, D. Bernarda da Encarnação Correia. Por essa altura estava já a viver fora do convento a última freira a falecer (1909), D. Carolina Augusta de Castro e Silva. Terão sido descendentes desta última a passar a receita da marmelada branca para fora do convento, a Lucinda Canto, que ganhava a vida trabalhando a dias e fazendo em casa este doce muito especial. Foi ela quem chamou Maria de Lourdes Modesto para que assistir à confecção da marmelada a fim de que preservasse a sua receita para a posteridade. Desde então, Maria de Lourdes tem incessantemente divulgado esse saber, como fez ontem numa das tertúlias mensais da ACPP (Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal), meritoriamente promovidas por Virgílio Gomes. E aqui estou eu hoje para vos passar o modo de fazer da marmelada branca da Lucinda Canto via Maria de Lourdes Modesto, a quem agradeço o ensinamento ao vivo.

 

Em que difere esta marmelada da regular, de cor avermelhada poderão os leitores perguntar. Em primeiro lugar pelo esforço feito para evitar a sua oxidação, responsável pelo tom avermelhado: assim que descascados, os marmelos são colocados em água morna (há quem lhe ponha limão, ausente da receita de Lucinda). Por outro lado, o facto de levar muito açúcar (1,250 kg para 1 kg de polme de marmelo) e de este ser muito mexido até a marmelada arrefecer conduz ao «efeito fondant» (de solidificação), como lhe chamou Maria de Lourdes. Tal como na confecção desta pasta de açúcar é o facto de ser muito manipulada que a embranquece.

 

marmelos

 

 

 

Para poder aprender em primeira mão, tive o privilégio de participar na sua confecção em casa de Maria de Lourdes Modesto. É um trabalho moroso, mas fácil de seguir à risca, garantindo o resultado. Aqui fica a receita desta marmelada fina e muito doce. Aproveitem que está na época dos marmelos.

 

MLM

 

 

 

Marmelada branca

Esta receita foi adaptada do texto de Maria de Lourdes Modesto após ter assistido à sua confecção.
Use marmelos maduros (amarelos), mas misture alguns verdes, por causa da pectina.

 

Por cada quilo de marmelo, 1,250 kg de açúcar

  • Pese os marmelos.
  • Coloque ao lume um tacho (que não seja de alumínio) com água e deixe-a amornar. Esta água destina-se a evitar a oxidação dos marmelos e nunca deve passar de morna.
  • Lave os marmelos para lhes retirar a penugem, descasque-os e retire-lhes o centros. Corte os quartos em gomos. Vá sempre deitando os gomos na água morna. Atenção: reserve numa tigela ou num saco todo o desperdício. Como já não vai poder pesar a polpa dos marmelos que já está na água, vai ter que pesar os desperdícios para obter a quantidade de açúcar.

marmelos ao lume

 

 

  • Quando tiver todos os marmelos na água, aumente o lume e deixe-os cozer durante cerca de 15 a 20 minutos. Para ver se estão cozidos, retire dois gomos para um pratinho e veja se os consegue esmagar com um garfo (não os deixe desfazer na água). Escorra-os à medida que os vai esmagando no passe-vite (originalmente, numa peneira, e desesforçadamente com a varinha mágica). Mantenha a polpa quente (por exemplo, sobre uma tábua de madeira).

 

puré de marmelo

 

 

  • Entretanto, pese o desperdício e subtraia do peso original dos marmelos. Será este resultado que servirá para calcular a porção de açúcar: para 1 kg de marmelo usar 1,250 kg de açúcar.

 

desperdícios de marmelo

 

FullSizeRender.jpg

  • Chegou a altura de fazer o ponto de açúcar (rebuçado ou de bola rija, 129º no termómetro). Não dá para usar o pesa-xaropes que só mede até ponto de espadana. Empiricamente, o ponto de rebuçado verifica-se quando ao deitarmos um pouco de calda numa tigela com água fria conseguimos moldá-lo em bola rija. Ou como explicava Lucinda Canto, quando atiramos essa bolinha de encontro à bancada e esta faz barulho, como se fosse uma pedra. Para cada quilo de açúcar, use 2,5 dl de água limpa para cada quilo de açúcar. Guarde a de cozer os marmelos para a geleia, porque iria escurecer a marmelada que estamos a tentar que fique o mais clara possível. Deixe levantar fervura em lume brando e aumente o lume. Aguarde que a temperatura vá subindo, mas vá vigiando regularmente os sinais.

 

ponto de açúcar marmelada

 

 

  • Quando a calda estiver em ponto de rebuçado ou bola rija (a tal do barulho da pedra), apague o lume, por precaução, e junte a polpa, mexendo sempre com uma boa colher de pau. Maria de Lourdes Modesto tem uma reservada só para os doces.

 

ponto de bola rija

 

 

  • Agora começa o trabalho mais braçal, porque vai ter de bater a marmelada com a colher de pau no sentido que lhe der mais jeito, podendo sempre alternar. A finalidade desta acção «efeito fondant» é de fazer com que o açúcar que estava líquido solidifique, como acontece com esta pasta de açúcar muito trabalhada. Por outro lado, o açúcar ao solidificar fica mais branco, aclarando a marmelada. Só deve parar quando a textura permitir que a colher de pau se aguente de pé.

 

polpa pronta

 

 

  • Distribua a marmelada por tigelas ou despeje-a num tabuleiro baixo. Cubra com papel vegetal ou com um pano poroso e coloque-a ao ar para secar, de preferência fora da luz solar directa.

 

marmelada branca

 

  • Quando na marmelada surgirem cristais de açúcar, está pronta para que possa deliciar-se. Se usou o tabuleiro, pode cortar a marmelada em quadradinhos e voltar a secá-los um pouco, sempre protegidos do pó.

COGUMELOS NO CHAPiTÔ

cogumelos ernst Haeckel 1904.jpg

 

São todos mágicos, não apenas os mágicos. Não são plantas, mas sim uma espécie de frutos dos fungos, preparados subterrâneamente pelo micélio. Este é uma verdadeira Matrix, uma surpreendente rede que se desenvolve debaixo de terra e lança esporos reprodutivos, que conhecemos pelo nome de cogumelos.

Caíram recentemente as primeiras chuvas do Outono e eles aí estão em toda a sua glória. Não haveria melhor altura para o Chapitô, pela mão de Bertílio Gomes, promover este festival, muito expressivamente denominado Anel de Fadas. Entre 28 e 30, o espaço do Chapitô vai encher-se de exposições de produtores de cogumelos, workshops e showcookings, tudo em redor dos cogumelos. Recomendo especialmente o dia 30, para que possam assistir ao workshop da Maria de Lourdes Modesto e do Joaquim Figueiredo, o saudoso chef que fez parte do movimento moderno da nossa cozinha e que é proprietário do Hôtel de France, em Maubourguet, nos Pirinéus. Eu vou estar também no jantar desse dia, em que Bertílio Gomes irá trabalhar com Pedro Pena Bastos (atualmente no Esporão).

 

Aqui fica o programa. Para mais informação sobre cogumelos no blog, veja http://conversasamesa.blogs.sapo.pt/os-sonsos-dos-cogumelos-92255

A gravura é de Ernst Haeckel, 1904

 

 

Programa ANEL DE FADAS

sexta feira dia 28
 

Terraço
19h00 – 01h00 - Menu de cogumelos


Animação Chapitô (organizada pela escola Chapitô )

 

Sábado dia 29
 

12h00 – 20h00 Mercado de produtores de cogumelos

 
Terraço do Chapitô
12h00 – 01h00 Menu à base de cogumelos
 
Animação Chapitô (organizada pela escola Chapitô)
 
Show Cooking

15h - 15h40 Bruno Salvado Restaurante Chapitô à Mesa

16h30 - 17h20 Óscar Geadas Restaurante G

18h00 - 18h40 Fernando Martinez Hotel Albatroz*****

 
Restaurante – Jantar de degustação a quatro mãos
19h00 – 23h00 Bertílio Gomes e Óscar Geadas 

 

Domingo dia 30

 

12h00 – 20h00 Mercado de produtores de cogumelos

 

12h00 – 12h45 Workshop Noções básicas sobre o cultivo de cogumelos by Cogumelos de Portugal

 

Terraço do Chapitô
12h00 – 01h00 Menu à base de cogumelos
 
Animação Chapitô (organizada pela escola Chapitô)

Show Cooking

15h - 16h00 José Neves e David Botelho Restaurante Chapitô à Mesa

16h30 - 17h20 Pedro Pena Bastos Restaurante Esporão

18h00 - 18h40

Maria de Lurdes Modesto Especialista e escritora de gastronomia

Joaquim Figueiredo Hotel de France - MAUBOURGUET

 

Restaurante – Jantar de degustação a quatro mãos
19h00 – 23h00 Bertílio Gomes e Pedro Pena Bastos 

 

OS BIFES DE LISBOA

bife a faustino.png

 

 

Do meu último livro, Semear sabor, Colher Memórias, a história dos famosos bifes de Lisboa e a receita do meu favorito, o Bife à Faustino.

 

 

A carne é fraca

 

O aroma intenso, a cor vermelha, a textura que nos resiste quando lhe metemos a faca, são sensações com que a carne nos atinge descaradamente, mexendo com todos os sentidos e com a parte mais profunda do cérebro, definida pela nossa herança bárbara de caçadores e comedores de carniça. Os povos do norte germânico que pela península passaram tinham nas suas terras um clima frio que permitia a conservação das enormes quantidades de carne geradas pela matança de um só bovino. Pelo contrário, Roma, com clima mais quente, pouca carne de vaca comia. Guardavam os bois para o trabalho e os terrenos para a agricultura, considerando os pastos um desperdício da terra. O seu gosto pela fineza da carne das aves prolongou-se pelas mesas nobres da idade Média meridional, onde a carne bovina foi remetida para segundo plano da hierarquia dos alimentos, que reflete e se reflete na organização social. Nós portugueses não somos ainda hoje grandes entusiastas da carne de vaca, talvez pela sua atual falta de qualidade.

 

Os bifes foram popularizados pelos próprios «bifes», os ingleses, que os introduziram em França, depois da batalha de Waterloo. Como sempre, os franceses fizeram versões melhoradas, enriquecidas com diversos molhos e manteigas, frios ou quentes. Foram os franceses que elevaram o bife ao céu das preparações culinárias com o Tournedos Rossini, uma criação de Marie-Antoine Carême, o rei dos chefs, que foi chef de reis e até de um imperador gourmand, Napoleão Bonaparte. Do outro lado do campo de batalha, surgiu o beef Wellington, homenagem sofisticada de um desconhecido a este marechal who couldn’t care less about food[1].

Porém, foi nos EUA que os vários tipos de steaks se tornaram símbolo da «verdadeira» comida e, sobretudo, da comida viril. Popularizaram-se em clubes nova-iorquinos, nos quais os homens mais abastados se juntavam para grandes almoçaradas de suculentos bifes, comidos em série sem qualquer guarnição e regados com canecas de cerveja. O hábito neste país é acompanhar-se o bife com batata assada, já que a frita está reservada para os hambúrgueres. Com frites, as batatas fritas palito, comem-no os franceses, que o regam com um encorpado vinho tinto.

 

Nós por cá, já tivemos melhores carnes. Nos fins dos século XIX, Lisboa ainda era abastecida com grande cópia de bois vindos da Beira, o que permitia comer um bom bife até nas tabernórias menos recomendáveis. Não foi por falta de legislação que a situação piorou tanto, que sempre a tivemos apertada. Regulamentámos matadouros e açougues, mas nunca dominámos a técnica correta de separação dos cortes das carcaças. Misturamos diversas peças, agregamos músculos de texturas diferentes e, por outro lado, passamos demais a carne, talvez por, à partida, a sua qualidade ser má e por questões de saúde. Até há bem poucas décadas, o bife era comida de cidade e de «rico». Comer uma «bifalhada» significava abastança alimentar. Foi só a seguir à Segunda Guerra Mundial que o advento da refrigeração foi permitindo a vulgarização da carne de vaca.

 

Na Lisboa do fim do século XIX era comum servir bifes em cafés e cervejarias, muito apreciados por famosos escritores e jornalistas a quem este alimento sanguíneo renovava as forças intelectuais. Chegou até aos nossos dias a fama de alguns desses bifes, de que falaremos neste capítulo.

Tinham geralmente em comum o serem feitos em frigideira de ferro e iniciados na banha, com a adição posterior de manteiga. Variavam as batatas fritas do acompanhamento. O «bife à inglesa» levava batata cozida no vapor e tinha a originalidade de não ser frito, mas sim grelhado em madeira de sobro. Caracterizavam-se por um aquecimento intenso inicial que selava a carne e a deiva vermelha no interior[2].Rematava-se com manteiga, sumo de limão e salsa, como se de um à la meuniére se tratasse. Servia-se na célebre Taverna Inglesa, também chamada Café Price, uma casa situada na zona do Cais do Sodré, mais precisamente na esquina da Travessa dos Remolares com a 24 de Julho, no nº 76. Segundo o Novo Guia do Viajante em Lisboa, Collares, Mafra, Batalha, Setúbal, Santarém, Coimbra e Bussaco, esta casa «fornece almoços e mesmo jantares à inglesa; é notável pelos seus bifes, e muito frequentada por estrangeiros e marítimos». Grelhados em lenha seria a confeção mais comum dos bifes no princípio do século XIX. Em O Cozinheiro Completo, de 1855, pode ler-se esta receita de «bifes de filetes [lombos] de vaca»: «Corta-se o filete da grossura de seis linhas e de forma redonda. Tempera-se de sal e pimenta inteira; ensopa-se em manteiga derretida, põe-se a passar sobre as grelhas, e com grande brazido, serve-se logo, sem se deixar passar muito tempo. Pode-se pôr debaixo um môlho picante ou uma substância clara»[3].

Um outro bife famoso era o do Montanha. Este estabelecimento surgiu em 1860, na Rua do Arco da Bandeira, pela mão de «Manuel Nunes Ribeiro Montanha, dandy endinheirado, grande janota da época e estroina»[4]. Foi frequentado «pela jeunesse dorée do tempo»[5] e pelas colónias francesa, belga e suíça. O «culinotécnico», termo curioso que surge nesta mesma crónica de 1956, era um francês de nome Muma Serrière, criador de um original bife com rodelas de tutano.

Ainda hoje, o bife com batatas fritas é um dos pratos típicos das cervejarias. Infelizmente muito abastardado, até nas mais populares e, hoje, mais turísticas. Continua a ser fraca a carne, e os molhos piores do que nunca, verdadeiras aguadilhas engrossadas à custa de farinhadas. Na década de 50, já a pena de Alfredo de Morais reconhecia que: «O truque dos farináceos para engrossar a composição é camuflagem da actualidade.» Uma atualidade que infelizmente está cada vez mais atual.

Aqui fica um dos clássicos bifes de Lisboa que considero dos mais ricos, o Bife à Faustino. 

 

 

Este bife é rico em sabores e requintado. Em vez de ser apresentado a cavalo, o ovo é mexido e surge no interior de meio tomate passado na manteiga. Foi criado pelo Faustino, cozinheiro/restaurador num estabelecimento, o Culinária da Avenida, situado numa esquina da Calçada da Glória, que mais tarde albergou o restaurante Trocadéro, o stand Dodge e, a partir de 1932, o Café Palladium.

Este Faustino era o pai de Alfredo de Morais, por sua vez também restaurador. A atividade deste último passou pela criação (entre fim da década de 20 e princípio da de 30), do Coq d’Or, localizado na R. Serpa Pinto, no Chiado, e do Majestic Club, situado na Rua das Portas de Santo Antão no58. Este último era um famoso dancing e casino de Lisboa. Inaugurado em 1910, época da trepidante primeira República, foi um de vários estabelecimentos do género na zona da Avenida e do Rossio.

Porém, Alfredo de Morais ficou mais conhecido como cronista na área da gastronomia, uma espécie de Curnonsky português, com quem até apresentava semelhanças físicas, e de quem traduziu o livro «À l’infortune du pot», publicado pela editorial Minerva em 1950.

 

 

 

BIFE À FAUSTINO 

Para 1 pessoa

1 colher de sopa de banha

1 fatia de pão de forma, cortada em função do tamanho do bife

1 bife do lombo, ou da vazia, com cerca de 200 g

1 fatia de presunto, demolhada durante 20 minutos

1,5 colheres de sopa de manteiga

1 tomate, sem a tampa e limpo de sementes

1 ovo, batido

sal e pimenta preta de moinho

 

  • Numa frigideira (de preferência em ferro), derreter a banha e fritar o pão. Retirar o pão para um prato.
  • Na mesma frigideira, fritar o bife e temperar com sal e pimenta preta. Colocar o bife escorrido da gordura sobre o pão.
  • Na mesma frigideira, fritar o presunto bem seco em papel de cozinha. Colocar o presunto sobre o bife.
  • Misturar 1 colher de sopa de manteiga na frigideira, para fazer o molho, e regar o bife.
  • Entretanto, numa outra frigideira, derreter um pouco de manteiga e corar o tomate. Retirar o tomate.
  • Na mesma frigideira, derreter o resto da manteiga e mexer os ovos. Deitá-los dentro do tomate.
  • Servir o bife com o molho, o tomate com os ovos mexidos e batatas fritas em rodelas ou enfoladas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] «que não podia ligar menos à comida».

[2] Bento da Maia, Tratado Completo de Copa e Cozinha, p. 133

[3] O Cozinheiro Completo, 1855, p. 19

[4] Alfredo de Morais, O Cronista 18/08/956

[5] Alfredo de Morais, O Cronista 18/08/956

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