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Conversas à Mesa

RISSÓIS DE PEIXE COM ARROZ DE TOMATE

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Trata-se de um prato que faz parte da última carta do actual Flores do Bairro que terá de fechar temporariamente no fim do ano, para reabrir em toda a sua glória no alto do novo edifício do Hotel Bairro Alto, já em construção avançada ao lado do actual. Só a nova cozinha representa um investimento de centenas de milhares de euros, será à vista e terá direito a muitas modernidades. Porém, na velha cozinha, já Bruno Rocha, que a chefia há um par de anos, faz as nossas delícias, por exemplo com estes Rissóis de peixe com arroz de tomate. Afinal parece que é possível.

 

 

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Possível levar certos pratos da cozinha portuguesa caseira ou regional à perfeição. Da utilização dos melhores produtos, aos quais se juntam as técnicas modernas e o sério trabalho de investigação do Bruno Rocha, resulta um prato que não desconstrói e não trai, mas aperfeiçoa. Enfim, aquilo que faltava fazer à cozinha regional portuguesa. Aquilo que deve ser feito à cozinha regional portuguesa.

Senão vejamos. Quando o prato chegou à mesa, comecei logo pelo arroz de tomate, trazido num tachinho de cobre. A sensação que tive foi que o arroz era cremoso no interior e no exterior. Era malandro, mas não era um ganda malandro, como aqueles arrozes abastardados a escorrerem uma aguadilha excessiva para a cozedura do arroz. O sabor era fresco, o grau de cozedura dos grãos de carolino perfeito. Quinze minutos depois, voltei a provar o arroz. Não tinha secado, mantinha-se com o mesmo grau de cremosidade. Essa tal cremosidade que eu senti no exterior do arroz tem uma razão, que não é nenhum segredo, porque o chef não tem segredos. Ele explicou-me que se trata de um ingrediente, mas não vou contar-lhes qual é, quero que tenham a surpresa intacta. Confesso que ia ao Flores do Bairro só para comer um tacho daquele arroz, e não precisava de mais nada.

Mas vieram também os rissóis de peixe. Tão típicos de Lisboa. O recheio bem compactado de peixe, com algumas das partes mais escuras dele, como era costume, porque são um prato de aproveitamento de sobras. Bruno Rocha fá-los com a carne que cata nas grandes cabeças de corvina assadas no forno. Desta forma o peixe ganha em sabor e prescinde do indesejável refogamento. O creme só serve mesmo para ligar o peixe e não para encher a cavidade. Tem o típico sabor da salsa e um travo a limão. Por fora, a massa tem a espessura certa, que se faz notar mas sem se impor ao recheio. O pão ralado é panko. Aqui fiquei na dúvida. Gostava de os provar com pão ralado normal, para ver a diferença. Pareceu-me o panko um bocadinho vaidoso.

 

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A língua, tão arredada anda dos nossos restaurantes e que magnífica textura tem. Aqui, cozinhada tipo écarlate: uma salmoura e depois uma cozedura no vácuo. o resultado é uma textura pouco fibrosa e muito agradável. acompanha com sabores que espevitam a língua (a nossa e a da vaca, maionese de wasabi e ananás dos Açores).

 

 

 

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O lombo de borrego com cenoura algarvia. os acompanhamentos do borrego lembraram-me um cozinhado muito comum nas casas burguesas: lagarto de vaca estufado em cebola e cenoura, sendo o resultado final um molho grosso.

 

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O Carcavelos acompanhou muito bem o bolo de limão e lima, numa harmonia de sabores ácidos  recuperarem os antigos bolos de laranja e de limão com uma cobertura de açúcar de confeiteiro e sumo do citrino. Estava tão apelativa que me esqueci de tirar a fotografia à sobremesa....

 

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Para terminar, a acidez do maracujá complementada pela cremosidade do chocolate branco.

 

 

 

Digo-vos apenas para terminar que o resto da refeição, para a qual fui convidada, foi toda baseada em Lisboa e toda ela muito boa. Uma chamada de atenção para o excepcional tratamento do tremoço do couvert, que resultou de um estudo profundo que Bruno Rocha tem vindo a fazer sobre esta leguminosa. No fim de Junho, haverá um jantar do Endógenos dedicado ao tremoço, inteiramente confeccionado por Bruno Rocha. Estou muito curiosa porque tenho a certeza que será genial.

 

 

 

 

O BACALHAU À GOMES DE SÁ BEM EXPLICADO

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BACALHAU À GOMES DE SÁ

«João, se alterares qualquer coisa já não fica capaz.» Previne Gomes de Sá, em nota final, na receita enviada por carta ao João do Lisbonense.

Ora aqui está o aviso que nos levou a procurar as receitas originais, porque muitas são as composições perfeitas que não devem ser mexidas. Outras haverá, claro, que ganham com a introdução de novas técnicas e utensilagem.

O Bacalhau à Gomes de Sá é um dos poucos pratos de que temos a receita original fornecida pelo seu criador, pelo que é imperioso que se faça como este o criou. Este magnífico prato representa a elegância da simplicidade, a arte do domínio dos básicos. Bacalhau lascado, batata, cebola, ovos e azeitonas compõem um dos mais famosos pratos da cozinha portuguesa, intimamente identificado com a cidade do Porto. A doçura da cebola lentamente amaciada contrasta com o salgado do bacalhau e juntos dão as boas vindas à cremosidade dos ovos e ao esperto final dos sabores da salsa e das azeitonas, num equilíbrio criado por um comerciante de bacalhau portuense, o próprio Gomes de Sá.

Provavelmente teria mais jeito para a cozinha do que para o negócio, já que conseguiu falir o armazém de bacalhau da Rua dos Bacalhoeiros, herdado do pai, embora tenha havido suspeitas de fraude.

O icónico prato terá sido provavelmente criado na década de 1910, numa das habituais almoçaradas que o comerciante fazia com os amigos em restaurantes dos arredores do Porto. No livro Bem Comer & Curiosidades, José Quitério afirma ter recebido, em 2001, uma carta de um afilhado de Gomes de Sá, onde este lhe faz parte de que o famoso prato terá sido estreado num restaurante do local da Ponte da Pedra (sobre o rio Leça, na estrada do Porto para Braga, à entrada de São Mamede de Infesta). O restaurante pertencia a uma

estalagem da moda, frequentada por nobres e dândis portuenses, sendo a sua especialidade a caldeirada de enguias. Camilo Castelo Branco fora seu frequentador assíduo, referindo‑a em várias das suas obras, nomeadamente em Doze Casamentos Felizes e em A Filha do Arcediago.

De tal forma se tornou famoso este bacalhau que, três décadas depois, já se havia formado o Círculo Gomes de Sá que, às sextas‑feiras, reunia para comer e tertuliar sempre em torno da receita original deste bacalhau.

Foi um dos agremiados, Frederico António Ferreira de Simas, duas vezes ministro na Primeira República e falecido em 1945, quem biografou Gomes de Sá. Porém, é através de dois artigos do makavenko Luís Ferreira (no jornal diário República, de 20 de maio de 1948, e na revista Ver e Crer, a 6 de outubro de 1945) que nos chega mais informação. Diz Ferreira que a referida biografia se encontra no arquivo do Círculo. Infelizmente, hoje não se sabe do paradeiro desse arquivo. Por essa altura, anos 1940, estava o Círculo Gomes de Sá

muito ativo, como se prova pela notícia do jornal do Rio de Janeiro, A Noite. (O clube dos makavenkos foi fundado em 1884 pelo empresário Francisco Grandela com fins filantrópicos e atividade gastronómica. Dele fizeram parte, entre outros, o Duque de Lafões, Bulhão Pato e Rafael Bordalo Pinheiro.)

Na sua edição de 20 de fevereiro de 1945, é referido o almoço oferecido no Círculo Gomes de Sá ao embaixador do Brasil em Portugal, João Neves da Fontoura. A completar a notícia, uma fotografia de alguns convivas, certamente em redor do precioso bacalhau.

 

 

 

 

Ainda segundo José Quitério, a primeira vez que esta receita surge em livro é na Arte de Bem Comer (1929), de Alinanda, pseudónimo sob a forma de anagrama dos nomes das duas autoras. A receita não é a original, feita em camadas  no forno, uma vez que a cebola é previamente refogada numa frigideira, à qual se junta também o bacalhau e a batata cozidos, sendo tudo mexido com um garfo de madeira.

A receita original terá sido oferecida (há quem diga que foi vendida, em momentos de aflição económica) por Gomes de Sá ao proprietário do Lisbonense, a um João, que inscreveu o prato no cardápio deste restaurante situado por cima do célebre caé  portuense com o mesmo nome. O Lisbonense era famoso pela música de orquestra e tinha a sua entrada principal pela Rua do Bonjardim.

No Isalita (pseudónimo de Maria Isabel Campos Henriques), de 1925, livro de grande divulgação até à década de 1960, ainda não há referência a este prato. Porém, rapidamente o Gomes de Sá se tornou famoso, sendo

a sua reprodução feita a partir de duas linhagens: a receita original e a de Alinanda. A linhagem original de Gomes de Sá está presente no Culinária Portuguesa, de Olleboma, na primeira edição datada de 1936. Caracteriza‑se por se colocarem todos os ingredientes em cru num recipiente de ir ao forno,

formando camadas.

Como a grande dificuldade da receita da linhagem Alinanda é chegar ao fim com os diversos componentes íntegros e individualizados após terem sido mexidos com o tal garfo de pau, faz‑se hoje um outro desvio à receita e coram‑se as rodelas de batata na frigideira, em vez de as usar simplesmente cozidas,

porque desta forma não precisam de ir ao lume e não se desmancham tanto. Desta forma, prescinde‑se

do forno, essencial na receita original. Maria de Lourdes Modesto, na Grande Enciclopédia da Cozinha e no Cozinha Tradicional Portuguesa, propõe uma receita mista, em que a cebola é alourada num tacho

com o alho, juntando‑se‑lhes posteriormente o bacalhau e a batata. No fim, vai tudo a alourar ao forno e enfeita‑se com os ovos cozidos, azeitonas pretas e a salsa.

Para terminar, aqui ficam as receitas deste bacalhau publicadas por Olleboma e por Alinanda.

 

 

 

 

 

BACALHAU À GOMES DE SÁ, VIA OLEBOMA

A única diferença desta receita para a de Gomes de Sá é ser para 6 pessoas em vez de 12. Elementos essenciais da receita original são a batata cozida com a pele cortada em rodelas grossas, o ponto de cozedura correto do bacalhau e a respetiva infusão em leite, o arrumo do prato em camadas individualizadas e a confecção no forno.

Olleboma, Culinária Portuguesa, Assírio & Alvim, Lisboa, 1994, p. 138.

 

Para 5 a 6 pessoas

 

1 quilo de bacalhau grosso

(peso em cru)

1 quilo de batatas

1 1/2 decilitros de azeite do

mais fino

1 grama de pimenta

4 cebolas medianas

2 dentes de alho

4 decilitros de leite

4 ovos cozidos

1 ramo de salsa

 

 

 

1. Toma‑se o bacalhau demolhado e põe‑se numa caçaarola com tampa, cobre‑se com água a ferver, tapa‑se

e aguarda‑se que passe um quarto de hora, sem ferver.

2. A seguir tiram‑se as peles e as espinhas, separando‑se a carne do bacalhau em pequenas lascas. Estas lascas vão para um prato fundo, cobrindo‑se com leite quente, deixando em infus.o pelo menos por uma hora. Numa travessa de ir ao forno, deita‑se o azeite, os alhos e as cebolas cortadas .s rodelas. Estando a cebola a alourar, juntam‑se as batatas previamente cozidas cortadas às rodas de um centímetro de espessura e as lascas saídas da infusão em leite.

Leva‑se a travessa ao forno, deixando ferver tudo por dez a quinze minutos. Sirva‑se bem ornamentado com os ovos cozidos cortados .s rodelas, as azeitonas e a salsa picada

 

BACALHAU À GOMES DE SÁ, VIA ALINANDA

 

Alinanda, A Arte de Bem Comer, Tipografia e Enc. Domingos d’Oliveira, Porto, 1929, pp. 140.

 

Para 6 pessoas

 

500 g de bacalhau

500 g de batatas

3 cebolas

4 ovos cozidos

1 decilitro e meio de azeite

Salsa picada q.b.

Sal e pimenta q.b.

 

1. Cozem‑se o bacalhau, as batatas e os ovos, cortando o bacalhau e as batatas aos bocadinhos e os ovos às rodas.

2. Numa frigideira, deita‑se o azeite e, logo que esteja quente, juntam‑se as batatas, o bacalhau, as cebolas .s rodas, os ovos, a salsa picada, o sal e a pimenta, e deixa‑se refogar mexendo com um garfo, de preferência de madeira.

1. Toma‑se o bacalhau demolhado e põe‑se numa caçarola com tampa, cobre‑se com água a ferver, tapa‑se

e aguarda‑se que passe um quarto de hora, sem ferver.

2. A seguir tiram‑se as peles e as espinhas, separando‑se a carne do bacalhau em pequenas lascas. Estas lascas vão para um prato fundo, cobrindo‑se com leite quente, deixando em infusão pelo menos

por uma hora. Numa travessa de ir ao forno, deita‑se o azeite, os alhos e as cebolas cortadas às rodelas. Estando a cebola a alourar, juntam‑se as batatas previamente cozidas cortadas às rodas de um centímetro de espessura e as lascas saídas da infusão em leite. Leva‑se a travessa ao forno, deixando ferver tudo por dez a quinze minutos. Sirva‑se bem ornamentado com os ovos cozidos cortados .s rodelas, as azeitonas e a salsa picada.