Fortaleza do Guincho: chez Mr. Vincent Farges
Mariniére de bivalves, comida das bonecas das sereias.
Há muitos anos que frequento o bar do Fortaleza do Guincho, mas só desde que Vincent Farges está na cozinha comecei a comer no restaurante, em geral ao almoço, porque a sua localização só pode ser plenamente aproveitada de dia.
Mas a vista não é a principal razão que me lá leva. Vou mas é pela comida, que a vista come-se, mas é só com os olhos.
Antes de me ocupar do almoço, tenho que desabafar. Que dó a decoração achinesada que espalharam pelo hotel e que veio substituir o clássico estilo inglês que sempre ali existiu. Que dó aquela passadeira que nos encara escada acima com roxos e lilazes. Que dó aquelas mesichas de vidrinhos do pátio. Que dó. Mas encho-me de coragem, entro na casa de jantar, viro as costas a tudo e fixo-me no mar.
A melhor companhia.
Acontece-me uma coisa curiosa quando vou ao Fortaleza: não tenho a sensação de ir ao restaurante, mas sim de ter sido convidada para comer em casa do cozinheiro, o chef francês Vincent Farges. Tenho até vontade de lhe levar um pequeno presente, como fazemos quando somos convidados por amigos, e de entrar na cozinha para o cumprimentar antes de me sentar à mesa. Confesso que nunca tive coragem de o fazer, mas nunca lá vou que não me lembre disso.
A razão é simples, a razão é a comida que o Vincent prepara. Os pratos são aparentemente simples, com combinações que não nos obrigam a esforço intelectual para as compreender. Podemos comer e conversar, sem precisarmos de nos lembrar da nossa infância nem de perguntar por onde devemos começar. Contudo, é evidente que esse equilíbrio que parece simples resulta de um trabalho complexo de escolha e combinação de produtos e de técnicas não visíveis no prato, mas muito bem executadas. O serviço educado e espontâneo também ajuda a esta sensação de nos sentirmos em casa.
Os entreténs, cortesia do chef.
O menu de Primavera é um hino aos “Primeurs”. Os primeiros e tenros legumes acompanham as carnes de animais jovens, ainda com sabores muito suaves.
Os entreténs oferecidos pelo chef já nos transmitem o espírito primaveril, sobretudo o pequenino pastel, que mais parecia um mini-canteiro cheio de rebentos.
Passemos então às entradas. Uma delas foi o “Filete de rascasso salteado com funcho do mar, legumes e batata-primor da Quinta do Poial em vinagrete de bottarga”. O rascasso é um peixe de linha que habita as rochas e cujo sabor delicado é, neste caso, acentuado e mediterranizado pelo molho de bottarga, uma preparação de ovas salgadas e secas. O funcho do mar costuma ser apanhado pelo próprio Vincent perto do restaurante. Um prato a não deixar de experimentar nesta ementa.
O rascasso, magnífico peixe.
A segunda entrada, “Mariniére de bivalves, polvos e chocos da nossa costa, salada iodada”, é também um primor, uma discreta salada em miniatura que mais parece a comidinha de bonecas das sereias. Do ponto de vista estético é muito bem conseguida, só acho destoante a cabecita do camarão.
Eis que chegam os pratos principais, todos eles escolhidos no lado das carnes.
Dois são de carnes jovens, cheias de vida primaveril. Gosto muito de pombo e este “Peito de pombo de Anjou assado, guisado de legumes e tâmaras, coxa em pastilla com sultanas” tinha para mim a mais-valia do piscar de olhos a Marrocos. O peito estava incólume a esta influência marroquina, que se traduzia na graça da adaptação da pastilla, um pastel de massa brick que costuma encerrar carne de pombo e é polvilhada com açúcar de confeiteiro e canela, mais parecendo uma receita do Arte de Cozinha do Domingos Rodrigues, e ainda no guisadinho de legumes e tâmaras. O peito da avezita, simplicíssimo como convém, estava de textura, ponto e sabor perfeitos e deixou-se complementar muito bem pela companhia magrebina.
O pombo "marroquino".
Em “O borrego de leite assado, entrecosto refogado com favas de primavera, alcachofras e funcho em barigoule anisado, migas de crumble”, o jovem ovino, talvez demasiado leitoso, ficou um pouco obnubilado pelo anisado do funcho.
O borrego.
O terceiro principal, o “Porco preto de raça alentejana assado, espargos brancos e puré de cebolas novas com bacon, gnochhi de batata glaceados com molho do assado” muito bem como sempre, que o Vincent é mestre a cozinhar este nosso porco. Muito bem a designação de “porco de raça alentejana”, escusado o preto, que tem de cair. Preto é cor, não é raça. Há porcos bísaros pretos, por exemplo. Quem melhor para dar o exemplo na correcção da terminologia que os prórpios chefs?
O porco de raça alentejana.
Capítulo das sobremesas: após uma pré de coco, a “Guloseima de chocolate quente e frio, com crocante de grué de cacau, compota de pêra perfumada com pimenta maniguette, sorvete de chocolate amargo”. Uma clássica combinação vencedora: o chocolate e a pêra. Tudo tranquilo, o gelado, servido à parte, era mesmo parte fria, nada aqui de surpresas blumenthalianas.
Os chocolates.
Igualmente bem a “Crosta de coco com ananás marinado com lima, geleia de frutos tropicais, sorvete de coco-lima, embora com apresentação mais pobre.”
Obrigada Vincent, por me ter recebido em sua casa. Gostei do almoço que preparou para mim.
Coco e ananás.
Lindo, o remate final das mignardises.
Fortaleza do Guincho
Estrada do Guincho Cascais
+351214870431
Restaurante com 1 estrela Michelin
Ao almoço, menu especial com pratos da carta principal (excluindo marisco e pouco mais) 50 euros por entrada e prato principal ou prato principal e sobremesa. Entrada, prato principal e sobremesa, 60 euros. Entrada, prato de peixe, prato de carne e sobremesa, 80 euros.