A célebre porta azul do Per Se, igual à do French Laundry, na Califórnia.
Escrevi este texto há cerca de 1 ano para o Fugas. Reproduzo-o hoje para nos refrescarmos todos um pouco de tanta fartura de fumeiro e de chouriças. O Per SE é o 10º restaurante melhor do mundo na classificação da revista Restaurant.
PER SE
A porta do Per Se é de madeira cor de lavanda, geminada com a do californiano French Laundry, o «primeiro» restaurante de Thomas Keller, mas a entrada faz-se por duas portas deslizantes em vidro que nos conduzem ao enorme e confortável salão/bar/garrafeira de onde se avista a estátua de Cristóvão Colombo que dá o nome ao local (Columbus Circle). Do lado esquerdo, os olhos repousam na escuridão do Central Park, onde se adivinha esteja algures a velhota das pombas do Sozinho em Casa, enquanto do direito se vislumbram as brilhantes luzes do Downtown sempre desperto. No asfalto estão 35ºC húmidos, lá dentro, para cortar o frio do ar condicionado arde uma lareira a gás e os empregados distribuem pashminas em caixas de madeira pelas senhoras de ombros desnudos. Estamos no topo do fine dining estado-unidense: entre o Per Se e o French Laundry somam-se seis estrelas Michelin seis. A sala moderna, sem ser minimalista, distribui-se por dois níveis. A posição das dezasseis mesas para duas, quatro pessoas e seis pessoas permite que todos os comensais estejam virados para as rasgadas janelas. Ao fundo da sala há ainda um reservado para dez pessoas. Predominam os castanhos das madeiras e os beiges e os brancos dos atoalhados.
Das rasgadas janelas vê-se o Columbus Circle.
A cozinha do chef Thomas Keller é orientada para uma meta: a perfeição, uma espécie de Ideia ou Essência platónica, valor absoluto que deve ser procurado, apesar de inalcançável. Para perseguir a perfeição, Keller baseia-se nos dois termos de uma equação: os melhores produtos e as técnicas da cozinha francesa que muito admira (ele trabalhou em França, nomeadamente no Pré Catelan). No que diz respeito aos produtos, a constante menção à sua proveniência atesta a excelente relação do chef com os pequenos fornecedores, bem patente no menu de degustação de nove pratos, cada dia diferente com pequenas excepções: as ostras são de Island Creek, o caranguejo de Chesapeake Bay, os pêssegos da quinta Pearson, o poussin da Four Story Hills e a carne da Snake River. No outro membro da equação, o das técnicas, afirma-se indiscutivelmente a sua obsessão com a perfeição. Os sabores são depurados até serem atingidas as essências.
Ao longo do jantar, estes pratos «essências» vão alternando com outros em que a manipulação do produto se reduz à expressão mínima e em que se valorizam os sabores intrínsecos. O caso das duas manteigas pode ser usado para caracterizar a força dos produtos versus a influência francesa. Na mesa são colocados dois tipos de manteiga de vaca: uma, proveniente de um rebanho de meia dúzia de vacas de uma criadora que apenas abastece os restaurantes de Keller; a outra, uma manteiga francesa do Loire, com flor de sal.
Decoração impessoal, mas calorosa. Acolhimento e serviço como seria de esperar. Chef de mesa acima do esperado.
O primeiro prato do menu, o «Caldo de legumes em geleia com bottarga», é um leve piscar de olho à cozinha tecno-emocional, a que Keller chama cozinha progressiva, uma vez que o caldo é servido num prato de sopa, mas gelificado. Como acompanhamento, microlegumes do quintal do French Laundry. Mas por aqui ficamos em termos progressivos. Como se pode ler no site do Per Se: «Não queremos impressioná-lo. Queremos apenas cozinhar para si e fazê-lo feliz.» E, indubitavelmente, Keller e Kaimeh, o chef residente, fazem a nossa felicidade.
«Ostras e pérolas», o prato emblemático originário do French Laundry e presente em todos os menus de degustação, é uma espécie de mar cremoso, em que umas pequeníssimas ostras se aninham numa cama de cremosas pérolas de tapioca e se escondem sob o caviar osetra. Ali está a Ideia platónica de ostra, a sua essência: sabor a mar ao mesmo tempo que a boca se deleita em cremosidade.
Seguem-se-lhe o tártaro de atum com pannacotta de ouriço-do-mar, o caranguejo de casca mole e a codorniz recheada com foie gras. De sabor quase intoleravelmente concentrado, e típico exemplo do prato «essência», a custarda de trufas brancas é servida numa casca de ovo (do vizinho Colombo?) e encimada por um «ragôut» de trufas pretas.
O emblemático Ostras e Pérolas que nunca sai da carta.
Para descansar o palato destas emoções fortes intercalam-se os pratos com produtos de sabores naturais, nomeadamente os de peixe. Thomas Keller não dispensa o peixe português, sobretudo o salmonete, exportado pela Pescaviva, uma empresa portuguesa que trabalha principalmente com o estrangeiro. Detalhe curioso, o peixe vinha acompanhado da respectiva pele frita e supercrocante, pendurada num pequeno estendal de prata, como se estivesse a secar. A lagosta da Nova Scotia é escalfada em manteiga que lhe concede textura firme, mas ao mesmo tempo macia, e lhe reforça o sabor, nada adocicado como por vezes é costume na América do Norte. Em matéria de carnes, chega primeiro um poussin, alimentado a milho e lacticínios, do tamanho de um punho, que vem exibir-se à mesa inteiro antes de ser cortado. Cada pessoa recebe um peito e uma perna, sendo que ao osso desta vem agarrado um extensor em prata, criação de Escoffier, que permite comê-la à mão. A «calotte de boeuf» tem tudo o que se pode desejar na carne e o sabor é reforçado pela sauce bordelaise. Aliás, quase todos estes pratos vêm acompanhados com molhos, adaptações de clássicos franceses, que revelam a grande técnica de Keller e a paixão que sempre dedicou a este capítulo culinário. Foi exactamente através da preparação de uma hollandaise que o chef se apaixonou pela cozinha, quando começou a trabalhar no restaurante da mãe onde fazia diariamente este molho. Porém, cada dia procurava aperfeiçoá-lo, aproximar-se mais da Ideia absoluta da hollandaise. É esta a sua maneira de estar na cozinha: fazer cada dia melhor, depurar para guardar apenas o essencial.
As sobremesas começam com o revivalismo da root beer, a salsaparrilha, inócua para nós a nível emocional, e prosseguem com variações em torno do morango e do chocolate. Para terminar, vêm catadupas de mignardises com uma apresentação muito original.
A carta de vinhos é imensa, como seria de esperar. A copo (o mais barato ronda os 16 euros) e uma extensíssima lista de meias garrafas que permitem variar o vinho ao longo da refeição. Para quem gosta de beber água, uma surpresa. O restaurante tem máquinas de tratamento próprias e serve versões lisa e gaseificada em jarro. O pessoal da sala, naturalmente simpático e prestável, está sempre pronto para ser interrogado e aconselhar.
Outra nota muito interessante no Per Se é a utensilagem de mesa. Os talheres são em prata Ecuis e os pratos em porcelana branca, alguns vintage. Para fugir à imagem da «ervilha» no meio do prato, somos confrontados com uma sobreposição de pratos iguais mas de tamanhos diferentes, quais matrioshkas, por vezes dispostos em cinco ou seis camadas concêntricas, até culminarem num micro-prato raso ou de sopa, num copo ou numa taça. O resultado destes zigurates é esteticamente perfeito.
Para terminar, deixo um conselho. Jante cedo, para não ser prejudicado pelo jet lag, uma vez que a refeição não dura menos de 3 horas e meia.
PER SE
Reservas (com dois meses de antecedência) em www.opentable.com ou pelo telefone 001.212.823.9335
10, Columbus Circle, 4° andar (edifício Time Warner) Nova Iorque (a entrada é mesmo através do centro comercial)
Jantar: todas as noites
Almoço: sextas, sábados e domingos
Dois menus de degustação, sendo um vegetariano (275 dólares por menu). O serviço está incluído.