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Conversas à Mesa

Tesourinhos da minha biblioteca: Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues

Página de rosto do livro.

 

A emoção que senti quando desfolhei pela primeira vez este livro tem poucas rivais. De quem teria sido? Quem teria, há quase 400 anos, passado as mãos por estas mesmas folhas e onde? Como teria sido este livro aproveitado?

Da autoria de Domingos Rodrigues, cozinheiro da corte de D. Pedro II. É o primeiro livro de cozinha conhecido em Portugal (tirando o caderno da infanta) e teria que ser o primeiro a aparecer nesta "rubrica" dos tesourinhos. Tem 15 cm de comprimento por 10 cm de largura e a capa ainda é a original restaurada. Não é a primeira edição (1680), mas data de 1758, quase um século depois, ainda assim anterior ao de Lucas Rigaud. 

Junto algumas páginas sobre enchidos e chamo a atenção para o facto de nenhum dos que aqui aparecem (e há outros) levar ainda colorau....

 

Capa do livro.

 

As receitas de enchidos.

...

A Casa Lapão, em Vila Real, surgiu de uma outra casa onde hoje se localiza a fábrica.

 

Imaginemos por um breve momento que, nas discussões teológicas que tiveram lugar ao longo de séculos, a Igreja tivesse considerado o açúcar como um alimento a ser banido na Quaresma. Cruzes, canhoto, que arrepio. Abandonemos de imediato esse angustiante pensamento e louvemos São Tomás de Aquino que partiu em sua defesa. O que a nossa doçaria teria perdido se os médicos, que o consideravam um veneno tanto mais perigoso quanto o seu sabor era agradável,  tivessem levado a melhor nessa discussão. 

 

 

 

Em cima, pastéis de santa Clara, esq em baixo, pitos, dta em baixo, cristas.

 

Teríamos, provavelmente, perdido os pitos de Santa Luzia, as cristas de galo e os pastéis de Santa Clara, produzidos e aperfeiçoados ao longo de séculos pelas mãos das clarissas de Vila Real e de Coimbra.

A boa notícia é que estes bolos ainda existem e estão à venda numa lindíssima pastelaria de Vila Real, a casa Lapão. Além destes bolos, não deixe de provar um dos melhores pudins de amêndoa que já comi, feito na clássica forma de trevo.

A título de curiosidade, aqui vai o respectivo receituário conventual, retirado de

Doçaria dos Conventos de Portugal, de Alfredo Saramago.

 

Pitos de Santa Luzia (convento de Vila Real)

 

Trouxinhas de massa pouco fina recheadas com doce de abóbora.

 

Faça uma massa com 125 g de farinha, água e sal suficiente para tender e 75 g de manteiga. Estenda bem a massa de maneira a formar uns quadrados. Deite no meio doce de abóbora e dobre as quatro pontas do quadrado de massa para o meio de forma a fazer uma pequena trouxa. Leve ao forno a cozer e polvilhe com açúcar. 

 

As fantásticas, fabulosas e deliciosas cristas

 

Cristas ou pastéis de toucinho do céu

 

Para mim, são os melhores desta trilogia (esta agora lembrou-me uma mania recente dos nossos pasteleiros).

 

Faça uma massa com farinha, 1 ovo, água e muita manteiga, numa proporção de maneira a que a massa possa ficar muito estaladiça e isso só se consegue com muita manteiga. Terá de encontrar a consistência à medida que vai tendendo. Deixe repousar a massa durante 1 hora. Estenda a massa e com uma carretilha corte rodelas de massa par que no meio ponha recheio de toucinho do céu. Dobre a massa e volte a cortar com a carretilha arredondando a forma de pastel. Leve ao forno a cozer.

 

Acertar no ponto da massa não é fácil. A receita do toucinho do céu consta do mesmo livro. 

 

Os pastéis de Santa Clara, do Convento de Coimbra.

 

Pastéis de Santa Clara

Um aviso: não tentem fazer isto em casa...Nem sequer lhes vou passar a receita, que também está no livro citado.

Só em Trás-os-Montes havia 3 conventos de Clarissas (Bragança, Vila Real e Vinhais Clarissas), mas esta ordem estava espalhada por todo o país. Esta receita de pastéis de Santa Clara pertence ao convento de Coimbra e a sua origem é visível no tipo de massa: a mesma dos pastéis de Tentúgal (Convento de Tentúgal), outra casa da mesma região. A massa destes doces é uma obra-prima que resulta de um único ingrediente, a farinha, combinada com água e com uma técnica fabulosa de estender a massa até á infinitude da finura. O recheio é de ovos-moles, a prova de que Deus é infinitamente bom.

 

Convento de Santa Clara em Vila Real.

 

Casa Lapão

Rua da Misericórdia 53/55, 5000-653 Vila Real

Tel: +351 259 324 146 

 

Para terminar o admirável pudim de amêndoa

 

 

 

O pudim de amêndoa em forma de trevo.

Pitões de Júnias

Os avassaladores afloramentos graníticos do Peneda-Gerês.

 

O topónimo Pitões das Júnias sempre me atraiu, mas foi só nesta viagem que tive a felicidade de visitar a isoladíssima aldeia granítica alcandorada a 1100 m de alitude e com pouco mais de 100 habitantes, que se dedicam ao pastoreio do gado bovino, caprino e ovino. Valeu a pena a viagem de Montalegre, no Barroso, até lá. 

 

Uma manada de vacas com pastor e cães em PItões das Júnias.

 

Originalmente um eremitério, o mosteiro de Santa Maria das Júnias, datado de 1147, ficou na mão dos monges de Cister a partir do século XIII, acabando por dar origem à aldeia. Actualmente é monumento nacional, mas está em ruínas, podendo ser alcançado após uma caminhada de cerca de 2 km. Da aldeia avistam-se os afloramentos graníticos do parque natural Peneda-Gerês, que impõe a sua avassaladora força telúrica a quem os mira do lado da aldeia.

 

Casas graníticas em Pitões das Júnias.

 

Muito mais se podia dizer acerca de Pitões, do modo como os aldeãos se organizaram comunitariamente ou como fizeram frente várias vezes aos espanhóis, mas vamos mas é ao que interessa. Há dois restaurantes em Pitões, mas nós escolhemos o Dom Pedro Pitões, que vai buscar o nome a um conterrâneo que foi bispo do Porto e ajudou D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa aos Mouros. Aqui comemos um magnífico cozido barrosão que tem a peculiariedade de apresentar algumas carnes de porco fumadas. Como legumes, as maravilhosas batatas da região e couves. Convém telefonar a encomendar. Para começar, ele foi o chouriço e o presunto do fumeiro próprio, ele foi o pão de centeio, ele foi os pastelinhos de bacalhau.

 

O cozido barrosão: carne de porco e de vaca, presunto e enchidos.

 

Claro que com estas condições de altitude e frio, teria de haver fumeiro em Pitões das Júnias. E, claro, onde há fumeiro lá estamos sempre os dois, eu e o Mário. ao fim de alguns dias, confesso-vos que já não aguento o cheiro do fumo e já me custa muito provar os enchidos. Como podem ver na foto que se segue, havia demasiado fumo lá dentro e quase não se conseguiu fotografar. 

Em algumas regiões abusa-se do fumo nos enchidos, que ganham um sabor desagradável. Noutras, o problema reside no tipo de madeira usada: em vez do castanho, usa-se até madeira verde de pinheiro, altamente tóxica. Qurr queiramos quer não, os enchidos espanhóis e alentejanos, curados ao ar sem fumo, educaram o nosso gosto. actualmente, a maioria dos consumidores prefere enchidos pouco fumados. Assisti no Minho e mesmo em Trás-os-Montes a um esforço nesse sentido. 

 

 

o Mário no fumeiro.

 

Nos últimos meses de vida, o porco é cevado, isto é, a sua alimentação destina-se à engorda. A comida cozinhada acelera este processo, pelo que, nesta fase, é hábito cozinhar os legumes, as batatas e as castanhas no chamado lato. Aqui vai uma foto do lato cheio de comida a cozinhar no fumeiro. ATT: nós somos parecidos com o porco, portanto, quem queira emagrecer, nada de comida cozinhada, só RAW.

 

O lato onde cozinha a ceva do porco.


Cozido de cascas ou casulas

As cascas ou casulas de que se faz o cozido de cascas.

 

As cascas ou casulas são as vagens ainda com o feijão incipiente que se põem a secar. São cozidas com o butelo (bulho, chouriça de ossos, bulhos, palaios, conforme a região) e eventualmente com outros enchidos. Fazem um cozido delicioso. Em Lisboa, a Justa Nobre costuma fazer este cozido no Spazio Buondi nesta época do ano.

 

 

O cozido de cascas.