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O imaginário urbano transformou a comida dos lavradores na comida saudável e saborosa do “campo”, baseando-se afinal na comida de festa burguesa a partir do princípio do século XX. Este mito dos “bons velhos tempos” em que tudo o que se comia era saboroso e natural foi construído pelos descendentes dos que haviam emigrado para a cidade, ou até pelos que nunca tinham vivido na aldeia, mas tinham ouvido falar. No princípio do século XX a comida do camponês era escassa, nada saborosa e pouco saudável, consistindo basicamente em pão, caldos engordurados com unto de porco e couves, raramente complementados por peixe ou carne (geralmente secos e/ou salgados) e enchidos.
Hoje continuamos a alimentar o mesmo mito urbano dos bons produtos da província, do artesanal. O citadino continua a achar que os produtos que se vendem nas nossas feiras são artesanais, que aqueles queijinhos são feitos pela Dona Lurdes do Sabugueiro e os salpicões pela Dona Cecília do Ousilhão, com ovelhas e porcos da sua criação e alimentados sem ração. Infelizmente o que as nossas feiras têm de sobra são maus produtos industriais, contrafacções e produtos chineses, alguidares de plástico e churros espanhóis.
É vredade que ainda temos alguns produtos artesanais de boa qualidade, mas esses não são fáceis de encontrar e não geram, em geral, abastecimento regular.
O laburdo em preparação
O primeiro chef a tentar comprar e usar produtos portugueses na cozinha foi o chef francês Aimé Barroyer. A sua intenção era estabelecer boas relações com os fornecedores, se possível directamente com os produtores. Ao garantir-lhes a continuidade do consumo do produto, esperava em troca que eles lhe fornecessem esses produtos com regularidade. É o que se faz em França, nos EUA, no Brasil ou nos países nórdicos. Nalguns casos são os próprios chefs que criam o produto, trabalhando em conjunto com o agricultor ou o produtor.
O Mário a fotografar um empratamento mais moderno do laburdo
Infelizmente, tirando um ou outro caso, sobretudo na área do pescado (peixe e marisco), e casos isolados nos legumes, essas relações não têm dado resultado e, nas cozinhas, dificilmente entra um bom produto com a regularidade desejada, queixa muito comum dos cozinheiros.
Tudo isto afinal para chegar ao seguinte: Não sei como faz o José Júlio Vintém, do restaurante Tomba Lobos, em Portalegre, mas a refeição que ele preparou para o Mário Cerdeira fotografar para o livro dos enchidos que estou a escrever tinha muitos ingredientes porcinos e a prova feita demonstrou que eram todos muito bons. Todos os pratos eram típicos da matança, uma das festas em que mais e melhor se comia na aldeia, mesmo nas casas mais humildes.
Pormenores do restaurante
Tomba Lobos, em Portalegre
Como Portalegre é mesmo junto à Beira, JJV preparou um laburdo, em duas versões de apresentação. O laburdo é um dos pratos da matança na Beira Baixa, um dos muitos à base de sangue e vísceras que se faz pelo país todo nesta festança. No Norte são os sarrabulhos, nos Açores, o debulho, no Alentejo, a surraburra, rexina ou cachola, no Ribatejo, a cachola. Características comuns a quase todos estes pratos além da presença do sangue e das vísceras, é o tempero de cominhos e a laranja. Aconselho vivamente a quem ainda não comeu, que experimente, caso goste de fígado e de sangue. A combinação é triunfante.
O entrecosto a fritar
Em representação do Alentejo, JJV preparou alguns petiscos que também nesta região se comem na matança.
Grelhadas com um pisco de sal, as burras revelaram a sua maravilhosa textura e sabor, não podendo esconder nada. Enquanto se forem estufadas ou cozinhadas em vácuo conseguem tomar sabores alheios, aqui têm de mostrar sozinhas o que valem e valiam o seu peso em ouro.
O laburdo da matança. Há muitas variantes de laburdo nas Beiras.
O entrecosto frito era fino, apenas com a carne suficiente para deixar que a fritura produzisse os seus efeitos benéficos sem secar. Estavam estaladiças e saborosas, de comer uma e outra e outra. Os enchidos, chouriço e farinheira de sangue, eram de boa qualidade. A prova de alguidar era o terceiro petisco. Trata-se da carne temperada nos alguidares com vinha d’alhos e massa de pimentão para os chouriços. Três ou quatro dias depois é costume fazer a prova desta massa antes de a enchouriçar. Por vezes simplesmente espetada em paus de louro e assada na lareira, ou frita, como foi o caso.
O fartes
Aqui ficam alguns testemunhos dessa jornada gloriosa que terminou com uma sobremesa de ovos, chila e amêndoa, o fartes. A propósito desta antiquíssima sobremesa, os fartes ou farteis, hei-de fazer um post em breve.
Obrigado ao José Júlio Vintém.