Aquilo que defendemos como sendo a tradição, e falando agora da cozinha, não tem na grande maioria das vezes mais de 70 ou 80 anos. Pratos que achamos muito antigos, perdidos na noite dos tempos, tiveram modificações recentes. Pratos que o mito urbano coloca nas mesas do povo lavrador, nunca por lá passaram, tendo apenas alegrado a mesa burguesa e, com frequência só em dias de festa. Quando recentemente estudei a nossa salsicharia, debrucei-me sobre um enchido, o butelo, que muitos defendem intransigentemente que se deve manter como é e como sempre foi. Só que há bem menos de 80 anos, o butelo era um enchido humilíssimo, só quase composto por ossos com pouca carne agarrada, destinado a dar um pouco de sabor aos caldos em que era cozido. Actualmente, é rico em carnes magras e, embora o nome seja o mesmo, a composição tornou-se completamente diferente, tendo mudado até o espírito com que se faz.
Quantas vezes se ouve dizer que é preciso cultivar as nossas tradições culinárias dando-lhes uma volta e um ar de modernidade. Se a nossa cozinha fosse exclusivamente mediterrânea, talvez não fosse missão muito difícil. Porém, os nossos pratos têm raízes atlânticas e bárbaras, sendo muitos vezes pesados e excessivos em gorduras e em proteínas.
Dar a volta à tradição não pode ser apenas pegar em produtos locais e combiná-los com outros que às vezes até andam na zona, como casar vieiras com chouriço. Estas combinações têm de ter alguma lógica subjacente e têm de ser muito bem estudadas para poderem funcionar. A seguir, a tentação é modernizá-los com umas flores ou até com esferificação do que quer que seja. Por outro lado há pratos que nada ganham com modernizações, como é o caso do nosso magnífico bacalhau à Brás. Ganham sim em ser feitos com produtos de grande qualidade e com as técnicas tradicionais.
Há casos em que as novas técnicas resultam, por exemplo uma cozedura a vácuo do bacalhau. Mas há casos em que só o assado em forno de lenha resulta, sendo iconoclasta a sua substituição pelo vácuo.
A propósito de tradição vou falar-vos em dois posts seguidos de dois restaurantes que lidam muito bem com a tradição. Um deles é o Ferrugem, de Famalicão, outro é o Salpoente, de Aveiro.
Se não é nada fácil dar a volta à maioria das nossas cozinhas regionais, o que diremos da minhota. Pratos típicos à base de sangue de galinha ou de porco, enchidos, muito gordura de azeite ou de toucinho, sarrabulhos ou tripas são desafios pesados para a mão de um cozinheiro moderno. Ali mesmo no Minho é exemplar a adaptação extremamente feliz do sarrabulho feita por Vítor Matos do Largo do Paço, Casa da Calçada, em Amarante, para o livro Sabores do Ar e do Fogo.
É preciso muita criatividade para pegar nestes pratos e dar-lhes uma volta que os aligeire, que os torne adequados ao nosso quotidiano e ao nosso gosto e saúde actuais. Porém esta foi a aposta de Dalila e Renato, no Ferrugem. Com tectos agradavelmente altos, decoração moderna a jogar com os tamanhos XL dos candeeiros e de um enorme quadro com uma pega, o restaurante, muito confortável e acolhedor, está instalado num antigo estábulo.
Renato foi nascido ali perto, conhece bem a região. Juntamente com a sua mulher Dalila, resolveu abandonar outras profissões e dedicar-se a este projecto, que privilegia os produtos minhotos e biológicos.
Há muito que queria experimentar o Ferrugem, mas só recentemente consegui concretizar esse desejo. Para poder ter acesso a mais pratos, optei por escolher a ementa de degustação. A minha impressão final foi de uma refeição bem conseguida que me deu vontade de voltar para conhecer melhor toda a ementa. A base da refeição foram pratos minhotos clássicos, como o caldo verde e o bacalhau, os enchidos e o azeite, a gordura omnipresente, completados por algumas incursões no litoral, que o Minho o tem magnífico.
Aqui fica um registo do menu de degustação, de bom tamanho. A refeição foi acompanhada com espumante Miogo (casta Espadeiro) e com Afro (vinho verde de Loureiro).
Almoço Junho de 2013
Iogurte de pedaços de carabineiro, tártaro de carabineiro com ostra da ria Formosa. Sabores fortes marítima do costa minhota, e não só, em texturas interessantes.
Caviar português: ovas de sardinha, caviares de vinagre, tomate, broa de milho, ervas finas e espuma de azeite. Aqui se encontra tudo o que pertence a uma boa sardinhada. Destaco a saborosa esferificação dos caviares de vinagre. O prato tem alguma encenação (vem numa lata de sardinhas com etiqueta descritiva apensa), que não tem eco no resto da refeição.
Caldo verde. O prato que define o Minho, tão copiado, mas irrepetível em qualquer outro lado. Todos os sabores triturados com subtil sabor a chouriço e o torinho de broa. Para além de não ficarmos com os filamentos verdes da couve pendurados da boca, ou ela eventual substituição da batata, não vejo utilidade em mexer num clássico perfeito.
Bacalhau sobre pão torrado com chouriço e azeitona preta. Muito bom bacalhau, certamente cozido em vácuo, combinação de ingredientes muito tradicional.
"Bifana" de bísaro com compota de cebola roxa. Combinação deliciosa da cebola-roxa com o porco e um belíssimo pão redondo. É sempre bom comer à mão. Aqui está um enriquecimento precioso da tradição.
Migas do toucinho de céu com gelado de abade de Priscos. Apesar dos títulos, a sobremesa sai leve sem perder no sabor, no fundo, aquilo que se pretende na tal modernização. A apresentação é linda. O pudim fica óptimo em gelado.
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Os pratos são todos equilibrados e ricos em sabor, surgindo em alguns mais criatividade.
Não há combinações estapafúrdias, todas elas têm uma lógica muito rigorosa, o que é extremamente desejável e louvável e, infelizmente, pouco comum. Os produtos de base são de boa qualidade. As raízes estão presentes e sentem-se e compreendem-se. Achei algum excesso de azeite em certos pratos, sobretudo na sardinha. Este caminho do Renato e da Dalila é um dos possíveis para a modernização da cozinha tradicional e regional. Desejo-lhes as maiores felicidades nesta via, que se espera continue sempre verdadeira e cada vez mais criativa.
R das Pedrinhas, 32
4770-379 Portela
Vila Nova de Famalicão
restaurante@ferrugem.pt
Tel. +351 252 911 700
Como não é fácil lá chegar, o restaurante tem dois roadbooks (do Pe de Lisboa) no site. Aproveite-os.