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Conversas à Mesa

COZINHA DE CULTO E O NOVO GOURMET

 

 

 

 

O MAD Symposium faz o Madrid Fusión, com a sua sucessão de show cookings, parecer BonChicBonGenre. Uma mistura de Cozinha de Culto, cirque du soleil, festival alternativo e folclore viquingue, afirma-se como intelectual e irreverente, de forma muito imediatista na iconografia apresentada. Pretende aproximar cozinha e cultura, nomeadamente em cenários alternativos, fazendo-lhe o enquadramento político. Colhe junto da burguesia do centro e norte da Europa e, em pequena escala, estado-unidense, para quem a comida não pode resultar da química agrária mas ainda menos do “sacrifício” animal e cuja comida é preferencialmente cereais e vegetais. O quase vegetarianismo, que ainda há pouco tempo, era sinonimo de pobreza nas nossas aldeias, passou a ser uma forma cultural de rejeição do poder simbolizado pela carne, sobretudo vermelha. Um dos oradores, Roland Rittman, defendeu o papel do homem-recolector, ajoelhando-se perante um tronco de árvore de um bosque encenado, numa homenagem tipo druídica à natureza. Se o cru significava a natureza e o cozido a cultura, conforme ensinou Mircea Eliade, se a agricultura era para os Romanos a civilização enquanto a caça e a recolecção seriam actividades bárbaras, chegámos a um ponto em que tudo quanto é fabricado (processado) é anti-natural e a natureza é a nova cultura. Como afirmou Massimo Montanari em Comida como Cultura «Esses exemplos ensinam que a contraposição entre cultura e natureza é, em grande parte, fictícia. O homem “civil” se auto-representa fora da natureza, mas a própria natureza se torna, na experiência histórica, um modelo cultural consciente, uma escolha intelectual alternativa à cultura.”








 

Marginalizando franceses e espanhóis (estranhamente esteve presente Alain Ducasse, a fazer a ponte), o MAD acolhe no seu seio escandinavo alguns cozinheiros estado-unidenses e o brasileiro Alex Atala, que além de superlativo cozinheiro e magnífico actor, sempre à vontade em qualquer papel, é o curador do festival do próximo ano. Atala está aqui com a sua dama, a Amazónia que, contrariamente ao que se pensa na Europa, há muito que não é natureza pura, mas devido à presença dos vários povos índios, “um modelo cultural consciente”. A imagem de marca de Atala no festival é uma giantesca foto em que dá o dedo. Não se sabe a quem. Presumo que não seja aos clientes dos seus restaurantes, mas sim às Monsantos deste mundo. Ou talvez apenas esteja no seu código genético.

O inimigo número 1, o Bafo de Onça  do MAD é a empresa Monsanto, as monoculturas e os transgénicos. A Monsanto, actualmente de capital quase todo francês, tem na Amazónia enormes áreas de monocultura de soja transgénica, cujas sementes já são tratadas com pesticidas. O Brasil sempre sofreu muito com as monoculturas, fossem elas de cana-de-açúcar ou de café.

Ao teatro experimental, o MAD foi buscar o drama, visível em quase todos os dois dias, mas sobretudo nas exibições que se tornaram mais mediáticas, as duas a cargo de latinos: o desventramento do porco por um talhante italiano (então não tinha bem mais impacto fazerem a matança no palco, cá como nós a continuamos a fazer na aldeia?)  e a matança-vudu da galinha pelo brasileiro Atala, acto puramente simbólico que põe em cena os princípios básicos presentes no acto de comer, nomeadamente a morte. Ainda assim metade da plateia rejeitou a encenação.















 


O projecto de um espanhol, Ferran Adriá, de incluir a cozinha na cultura deu frutos. Descentrando-se para o Norte da Europa, além de forma de arte, passou também a manifestação política, num mundo em que, por dia, 25 000 pessoas morrem de fome. Um número crescente delas cá pelo Sul da Europa. 


As fotos foram retiradas do site do MAD




 

 

O ARCO TRIUNFANTE

Vale a pena subir ao topo do Arco da Glória, sim esse mesmo, o que separa o Terreiro do Paço da Rua Augusta, cuja ascensão foi recentemente permitida pela incorporação de um elevador. Este permite chegar a uma primeira escadaria que desemboca na sala do relógio (instalado em 1941, no lado que encara a Rua Augusta), de onde parte um outra em caracol, num total de pouco mais de 40 degraus que se trepam bem. No topo, espera-nos a recompensa de uma vista panorâmica de Lisboa, que podemos apreciar comodamente amparados pelo muro que corre a toda a volta do terraço rectangular.












Do lado terra, achei curioso ver as cabecitas dos visitantes do miradouro do elevador de Santa Justa quase ao mesmo nível das nossas. Lá estão os inescapáveis Castelo de São Jorge e a Sé. Girando pela esquerda, avistamos a ponte e o Cristo Rei e, claro, o Tejo e a outra banda que, claro, é a outra banda. Encostamo-nos em familiaridade excessiva à pedra dos enormésimos pés e pernas das estátuas do Génio e do Valor, que a tal de Glória coroa em simultâneo. Do resto do arco, nada conseguimos ver. Por muito que me esticasse, não consegui sequer vislumbrar as estátuas de quatro grandes figuras da pátria: Viriato e Vasco da Gama, Marquês e Nuno Álvares Pereira, nem as do Rio Douro e do Tejo, reclinadas em cada um dos lados.











Conseguimos ver sim, olhando para baixo, a estátua equestre de D. José, actualmente perdida no meio do imenso terreiro completamente vago, tão vago que até parece desejar algum auto-de-fé que o encha de gente. O monarca e o corcel viram-nos a cara e dão-nos os traseiros, enquanto pisoteiam jesuítas e Távoras sob a forma de horrorosas serpentes. Inaugurada em 1775,  o seu pedestal exibia à época um medalhão do Carvalhão (nome pelo qual era popularmente conhecido o Marquês), imediatamente retirado com a morte de D. José, para ser reintegrado em 1833, na habitual roda do cai em graça/desgraça onde caem a maioria dos nossos políticos. Curiosamente foi Pombal quem acabou com os autos-de-fé, além de ter posto fim à escravatura.














A inauguração da estátua real foi aproveitada pelo Marquês para comemorações com grande pompa e circunstância. O evento teve um lado público, com “foguetório e vivas” ao rei, salvas de canhões vindas do Tejo, paradas militares e distribuição de vinho, pão e carnes aos populares. Dentro de portas decorreram banquetes e baile, tendo este sido aberto pelo próprio Sebastião José, volteando com a sua segunda mulher.




 

 

Veja na parte superior do Arco, a Glória coroando o Génio e o Valor. Em baixo, quatro estátuas: Viriato, Vasco da Gama, o Marquês e Nuno Álvares Pereira. as figuras laterais represntam os rios Tejo e Douro que enquadram o território dos Lusitanos. 






A despesa com dois dias de banquetes foi pantagruélica, sendo que as maiores rubricas contemplaram os doces. Em ovos, foram para cima de 4 mil dúzias, a verba do açúcar a maior alínea, o triplo dos gastos com peixe e com carne de vaca, só quase igualada pela loucura da moda, a neve que, vinda dos neveiros da serra da Estrela e da Lousã no dorso das mulas, dava origem aos gelados. Foram servidos 24 785 pães-de-ló e usaram-se 230 cocos, o que prova que o exotismo da fruta tropical se tinha já integrado nas ementas mais nobres.





 

 



 

 







Porém, a maior despesa foi com os vinhos, o dobro do gasto em açúcar. Cidra, champanhe e bordeaux, nos estrangeiros, Carcavelos, moscatel de Setúbal, Monção branco e tinto e vinhos da Madeira, de entre os nossos. Os gostos não mudaram muito, pois não?

 

 

O Arco está aberto entre as 9h e as 19h, mas a só se sobe até às 18h50. O preço é de 2,5 euros por pessoa, gratuito até aos 5 anos.

 

Sobre a inauguração da estátua, consultei Histórias de Ler e Comer, de Manuel Guimarães.

 

A DAR O BÉRRIO - MAU EXEMPLO DA RESTAURAÇÃO

O dia está de vento, mas o sol está por aqui, brilha e rebrilha sobre o mar da praia da Parede. Saio à pendura na moto, queremos almoçar perto do mar. O meu endereço favorito, o restaurante da Adraga deve estar debaixo de nuvens. Lembro-me de um outro que ando há um tempo para experimentar, ouvi falar dele, dizem que tem uma situação privilegiada.

Quando entro, acho a decoração interessante, muito espaço, mesa à janela a dar para as rochas da praia onde muitos corpos se estendem para tratar a coluna com aqueles calores húmidos.

Trazem logo uns búzios e uma tacinha com pasta de coisas indeterminadas que deduzo serem de origem marinha apesar de tão secas que a capa até já amarelou. Deito a mão a um búzio, mas assim que o retiro da casca chega até mim um cheiro a cloaca, como se o esgoto que antigamente abria para a praia tivesse sido canalizado para o canal do pobre gastrópode. Cheiro o lote e dele todo exala o dito cheiro. Chamo o empregado, peço para levarem que não se encontram em condições. A minha vontade é levantar-me, mas acho que pode haver um azar, decido dar segunda chance. Encomendo um bife com molho de mostarda e mel e um lombinho de porco com o mesmo molho e chamuça de maçã. Recomende por favor a carne, para não termos outro azar, peço eu ao empregado.

Não me delongo mais, a carne do bife sabe mal, já entrou e saiu do congelador várias vezes, já esteve cá fora muito tempo. O bife é uma tira de carne com dois dedos de largura, vem chamuscada na parte exterior, de forma que o  sabor da carne já passada do prazo se mistura com o sabor do queimado. O molho é um líquido gorduroso e amarelo que se estica pelo prato, nunca conheceu os sucos da carne.




O bife



A carne de porco estava tragável, até se comeu metade, com a sua chamuça de maçã meia crua.

As aflições que atingem a nossa restauração, deprimida pela descomunal alta do IVA e pela depressão da economia são descomunais. Imagino que um restaurante com um espaço tão precioso e com uma lindíssima decoração possa estar com graves problemas. Porém, não é servindo produtos já estragados que virá a salvação deste ou de qualquer outra casa, pelo contrario, sem qualidade mais depressa chegará ao fim.

Não tenho por costume escrever sobre os restaurantes onde como mal, mas este não podia deixar passar. Não ficaria bem com a minha consciência se não avisasse quem lê estas minhas crónicas que no Bérrio servem comida imprópria. Espero que as coisas se modifiquem, porque além de um serviço muito simpático o restaurante tem todas as condições estruturais para ser um grande restaurante. 





Aveiro ao Salpoente






Mencionei no meu post anterior que a propósito de tradição iria falar de dois restaurantes que souberam guardar o importante, dando em simultâneo atenção ao evoluir do gosto e às novas necessidades nutricionais. O primeiro foi o Ferrugem, o segundo é o aveirense Salpoente.









Dá gosto saber que na época difícil que atravessamos René Sabino, venezuelano de nacionalidade, investiu num restaurante que já existia, duplicando a sua área e procedendo à sua cuidada decoração. René tem um restaurante em Caracas, o Magma, e é sócio da Terraza do Casino, em Madrid, chefiado por Paco Roncero, que também já se deslocou ao Magma.
Dada a sua localização, o Salpoente, reaberto em Fevereiro, inspira-se, e muito bem, no bacalhau, quer em termos de ementa quer de decoração.
Situado frente a um dos canais, abriga-se em dois antigos barracões salineiros, construídos em ripas de madeira, conforme o costume da região, ainda bem visível na Costa Nova, onde essas ripas começaram a ser pintadas de cores. Mesmo ao lado do Salpoente existe um desses salineiros anda em funcionamento. Ali se vende o sal das marinhas locais que, conjuntamente com a vocação marítima dos aveirenses, possibilitou o aparecimento de grandes frotas de bacalhoeiros.














Mas voltemos ao Salpoente. O vasto espaço permite a existência de um grande bar, dotado de bancos mas também de confortáveis sofás onde se pode beber e petiscar, de uma mezzanine com uma curiosa mesa do chef e um bom espaçamento de mesas na sala de jantar. Além de exposições temporárias de arte, existe um curioso acervo próprio, do qual destaco um bacalhau feito de luvas e botas da autoria de Aureliano Aguiar e um curioso bacalhau-vestido, do artista angolano Manuel d'Olivares. A decoração tem outras referências sóbrias e de bom gosto à pesca de bacalhau, como as escadas em aço corten que foram envelhecidas em sal e água do canal para se assemelharem às dos bacalhoeiros. Se descermos agarrados ao corrimão a nossa mão fica com o característico cheiro marítimo.








Tal como no ambiente, são também alguns pormenores da carta que a tornam tão interessante. O seu autor é Duarte Eira, um dos vencedores do concurso Revolta do Bacalhau e ex sub-chefe de Vítor Matos, que, à frente da Casa da Calçada e apesar de bem jovem, já fez escola e tem discípulos muito bem encaminhados por todo o país.

Modernizar a nossa cozinha não passa por Introduzir raízes e tubérculos em pratos que nunca os levaram porque é muito nórdico, ou improváveis combinações de terra e mar com ingredientes que se antagonizam. Modernizar passa sim pela escolha dos melhores produtos, sujeitando-os em seguida às técnicas recentes que melhor reproduzem o efeito pretendido. Modernizar passa sobretudo por cozinhar de forma simples e harmoniosa, enformada pelas capacidades criativas de cada um.
É essa a maneira de cozinhar de Duarte Eira. Comecei o jantar da melhor maneira com uma salada de línguas de bacalhau, bem temperada e com bons ingredientes. Para alegrar, os pimentos surgem sob a forma de coulis e para enxugar não falta a broa. Línguas, sames e ovas constam sempre da lista, assim como um prato de bacalhau fresco. O recente comércio de bacalhau fresco tem muitos detractores e alguns defensores, sendo assim em quase todos os locais onde este peixe se consome seco, salgado ou salgado e seco. Na Terra Nova (New Foundland), terra de seca e salga de bacalhau, um dos pratos favoritos é o fresco, mas na Islândia, nunca aparece à mesa. Tradições.







Quando vi chegar a entrada seguinte, um ovo a baixa temperatura, com espargos e outros legumes ladeados pelo queijo da serra, não adivinhava como esta combinação estava bem conseguida e como vinha na altura certa. A coroar a harmonia, uns minitorresmos de crocante e sabor extremos. Grande teté.









A seguir chegou o meu preferido de toda a refeição, um creme de bacalhau com uma minúscula brunesa (corte em quadradinhos) de legumes e crocante de pão. Equilíbrio difícil de atingir o do sabor a bacalhau num creme de legumes, mas este estava no ponto. Que consoladora esta sopa, um saudável hábito bem nosso que não se devia perder. Custa-me muito ver restaurantes sem, no mínimo, uma sopa do dia, um bom exemplo de cozinha de mercado. Não podemos perder os bons hábitos alimentares que temos, nem em restaurantes de topo. Assim louvo o chef Duarte Eira pela introdução da sopa num menu de degustação, sabiamente posicionada.
Veio então o prato que eu mas esperava, o fiel amigo. De proveniência islandesa, fazia-se acompanhar por um molho de ouriço-do-mar, camarão e batata trufada. Gosto muito do bacalhau da Islândia, que compro na Manteigaria Silva, na Praça da Figueira. Contudo, confesso que já há algum tempo que não consigo ter em casa um bacalhau que não me desiluda de uma maneira ou outra. Mas no caso do Salpoente estava cheia de esperança de encontrar um Gadus mohrua perfeito. Ora o que me foi servido estava um pouco seco, apesar de cozido no vácuo, o que me desapontou. Uma situação que espero tenha sido pontual. Deliciosas, as trufas de batata.







Como prato de carne, costeletas de cordeiro com crosta de ervas e sementes, ao lado milhos de tomate. Carne saborosa e em bom ponto,
Sobremesa à base de café, caramelo e baunilha, uma das numerosas ofertas da casa, nada que tivesse ficado na minha memória.







Posso assegurar-vos que fiquei com vontade de voltar em breve a Aveiro para experimentar mais pratos do chef Duarte Eira no Salpoente e também para conferir a qualidadedo bacalhau. É bom ver que ainda se investe num restaurante com uma decoração espectacular, uma boa cozinha tradicional com uma vertente moderna e um serviço extremamente agradável. Uma combinação vencedora.








RESTAURANTE SALPOENTE
Canal de São Roque, nº 82/83, 3800-256 Aveiro, Portugal
Tlf +351 234 382 674 | Tlm +351 915 138 619
salpoente@salpoente.pt

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