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“Servir o homem”, do Damon Knight, foi um dos primeiros contos de ficção científica que li. Neste, uma raça aparentemente amistosa de extraterrestres vem à Terra ajudar a acabar com a fome. Todos eles se fazem acompanhar de um livro, que guardam com muito cuidado e cujo sugestivo título é “Servir o homem”, que os terrestres acreditam ser a sua missão. Cumprida esta, regressam ao planeta natal, levando consigo um grande número de humanos ansiosos por conhecerem novos mundos. A reviravolta final da história dá-se quando os homens encontram um exemplar desse livro que ficara esquecido na Terra e se apercebem que este não passa afinal de um livro de cozinha, recheado de receitas para engordar e servir o homem! Para mim, que sempre adorei foie gras, mas nunca consegui ultrapassar a má consciência do gavage, esses extraterrestres assumiram a identidade de supergansos, vindos do espaço com a missão de vingarem os seus primos palmípedes terrestres através desta gavage em homens. Mas este pavor não me impediu de continuar a deliciar-me com o foie gras.
O gavage é um processo de alimentação forçada destinado a aumentar o volume do fígado das aves, obrigando-as durante os cerca de 12 a 15 dias que precedem o seu abate a ingurgitar enormes quantidades de alimento, em geral de milho. Como consequência, o fígado dos gansos e dos patos chega a decuplicar de tamanho. Digamos que o gavage não é mais do que uma técnica em que o futuro prato vai sendo preparado enquanto vivo. Para suavizar a minha má consciência, obrigo-me a lembrar que este processo foi inventado pelos próprios gansos que, no princípio do Inverno, antes de migrarem, ingurgitam incríveis quantidades, a fim de poderem armazenar a energia sob a forma de gordura no fígado. Como alternativa a este processo de gavage, foi recentemente criado o foie gras “ético”: uma empresa espanhola da Extremadura (perto de Badajoz) recebeu um prémio no Salon International de L’Alimentation, em França, pelo seu foie gras sem recurso à alimentação forçada. Esta empresa aproveita o período de Inverno, em que as aves comem mais, para lhes proporcionar a melhor alimentação e para as engordar. Contudo, o fígado não crescem tanto como o dos animais forçados a comer. Algumas empresas francesas vieram contestar que este produto possa receber a designação de foie gras.
O fígado faz a gestão dos nutrientes dos alimentos, eliminando alguns e enviando outros para diversos locais do organismo. Um desses nutrientes é a gordura, que se vai acumulando no fígado sob a forma de gotículas, as responsáveis pela inigualável textura cremosa e rica do foie gras. Como a sua maior parte é insaturada, essas gorduras não são nocivas para a saúde.
Que saia das entranhas dos bichos, não conheço nada melhor do que o foie gras. Durante muito tempo considerado um produto quase mítico que ombreava com as trufas e o caviar, tornou-se recentemente mais acessível, sem contudo ter perdido o prestígio. A origem da sua fama remonta a civilizações muito antigas, onde o fígado tinha valor simbólico, sendo usado na adivinhação. Os Egípcios já apreciavam esta iguaria: no museu do Louvre podem ver-se pinturas retiradas de uma câmara funerária de Saqqara em que está detalhadamente retratado um processo de gavage de patos e gansos muito semelhante ao que ainda hoje se usa. Os Gregos mandavam-na vir do Egipto. Archestratus, famoso cozinheiro do século IV a.C. e autor de um livro de gastronomia em hexâmetros, refere-se-lhe como «o fígado, ou melhor, a alma do ganso». Esta citação chegou até nós através de um tratado de 15 volumes de Ateneu (século II-III d.C.), os Deipnosofistas ou O Banquete dos Sábios.
Os Romanos, sempre à procura do exótico, serviam foie gras nos seus famosos banquetes e orgias. Os gansos vinham já da Gália, mas nessa altura vivos e pelo seu pé. As aves eram alimentadas com figos, ecoando a clássica combinação do foie gras com os sabores doces. Em seguida, os fígados eram demolhados em leite e mel e inchavam ainda mais.
O fígado de ganso e de pato foi sempre muito popular em França. No século XVI, os judeus da Boémia eram os grandes técnicos da gavage, tradição que os Hebreus tinham aprendido com os Egípcios e que haviam trazido nas diversas diásporas. Devido às proibições religiosas, usavam as gorduras de pato como substituto da banha de porco.
Em França, as duas principais regiões produtoras de fois gras são o Sudoeste (Toulouse, Périgord) e a Alsácia (Estrasburgo). Como também é famosa pelas suas trufas, a região do Périgord juntou estas duas iguarias no famoso «paté aux truffes», que originalmente parece ter sido confeccionado com perdizes e ao qual já no século XVI se encontram referências. No século XVIII, há escritos que apontam Toulouse como um dos principais centros de produção de pâté. É no fim deste mesmo século que o marechal de Contades, governador da Alsácia, homenageia o rei Luís XVI com um pâté de foie gras em crosta de massa criado pelo seu cozinheiro, Jean-Pierre Clause. O soberano fica de tal forma maravilhado que oferece uma terra na Picardia a Contades e 20 moedas de ouro a Clause, que abre um negócio de foie gras e acaba por enriquecer.
No século XIX, algumas feiras, nomeadamente as de Périgueux e de Sarlat, no Périgord (Sudoeste), ficaram famosas devido ao foie gras. Entre o foie gras desta região e o da Alsácia há algumas diferenças, resultantes sobretudo do modo como é confeccionado. O alsaciano é bem condimentado e levemente acinzentado enquanto o do Sudoeste é mais rosado e tem sabor adocicado e a frutos secos (a cor está ligada ao pigmento do milho com que as aves são alimentadas).
Nestas regiões onde se criavam os patos e os gansos, cultivava-se também o milho, trazido das Américas. Hoje em dia, com o aumento do seu consumo, o foie gras passou a ser feito noutras regiões, como, por exemplo, na Bretanha. Em alguns locais, a qualidade deste produto é inferior, devido à industrialização e ao uso de hormonas e antibióticos nos animais. A popularização do consumo de foie gras em França levou à necessidade de o importar, sobretudo de Israel e da Hungria!
Nos EUA, a proibição de importação de fígados crus esteve na origem do grande desenvolvimento da produção local de foie gras de pato a partir dos anos 90. Os maiores produtores são a Hudson Valley, de Nova Iorque, e a Sonoma, da Califórnia. Na América do Norte, é muito famoso o foie gras da província canadiana do Quebec.
Pato ou ganso?
Ultimamente assiste-se também a um grande aumento do consumo de foie gras de pato, mais económico que o de ganso. Ambos têm os seus defensores: do foie gras de pato gosta-se do sabor levemente amargo e da textura mais rústica; do de ganso, do seu sabor mais subtil. Um bom fois gras fresco de pato pesa entre 500 g e 600 g; o de ganso, pode chegar ao dobro. As raças de patos usadas para produção de foie gras são a Mulard e a Barbary (pato-da-barbária).
Pequeno glossário do foie gras e do pâté de foie
Em 1988, a França regulamentou e simplificou as designações que constam dos rótulos do foie gras e dos preparados à base de foie gras. A designação foie gras indica produtos feitos exclusivamente com fígados de ganso ou de pato.
Foie gras
Foie gras inteiro
Cada fígado é constituído por dois lobos, sendo o anterior maior que o posterior; sob a designação “inteiro” podem ser vendidos apenas um ou os dois lobos. O foie gras inteiro é comercializado fresco, congelado ou com uma leve cozedura (neste caso, costuma levar sal, pimenta e uma bebida alcóolica, como Porto, Cognac ou, de preferência, Armagnac). É muito usado nos restaurants, em preparações quentes; por vezes, é cortado em fatias (escalopes finos) e salteado em lume brando, eventualmente com umas gotas de óleo de noz, que reforça o sabor a frutos secos. Pode ser acompanhado por um molho adocicado, mas a possiblidade de combinações é interminável. Se resolver aventurar-se a cozinhar o foie gras fresco, não chore sobre os euros derrramados em gordura que se vão escapando para a frigideira. Concentre-se no prazer voluptuoso que lhe darão os aromas reforçados pelo calor e a incomparável textura sedosa do foie gras.
Bloco (bloc) de foie gras
É obtido pela compressão de pedaços grandes de fígado até formarem uma espécie de cilindro achatado, sendo seguidamente cozido; contém obrigatoriamente 98% de foie gras (os outros 2% são para temperos). Nos blocos de foie gras com pedaços, encontram-se pedaços grandes de foie gras
O parfait, as mousses, as galantines e os pâtés contêm, no mínimo, 50% de fígado de pato ou de ganso, podendo o resto ser proveniente de outros animais.
Parfait
É constituído por pequenos pedaços de fígado esmagados. Contém, no mínimo, 75% de foie gras ligado com fígados de outras aves.
Pâtés e mousses
Contêm, no mínimo, 50% de foie gras, misturado com outras carnes. No caso das mousses, o foie gras é marinado, cozido e a sua gordura batida.
O foie gras pode ser comercializado fresco, mi-cuit (meio cozido) ou em conserva
Foie gras inteiro fresco
O foie gras fresco (cru) é um produto sazonal, disponível no Inverno, perto do Natal. Para escolher um bom foie gras fresco, faça uma ligeira pressão com o dedo polegar: o fígado deve ficar com uma marca que irá progressivamente desaparecer; se for seco, tem um toque húmido e textura elástica e rija. Devido às modernas técnicas de congelação, o foie gras congelado não perde qualidades.
Foie gras mi-cuit O foie gras mi-cuit é parcialmente cozido a uma temperatura entre os 75ºC e os 80ºC (pasteurizado), mas sem perder os aromas e a frescura, de forma a conservar-se durante algumas semanas no frigorífico (este varia em função do tempo de cozedura).
Foie gras de conserva
O foie gras é cozido a uma temperatura acima dos 100ºC e tem um maior prazo de vida. Os pâtés são exemplos de conservas.
Foie gras au torchon
O foie gras é cozido em caldo aromático num interior de um pano, refrigerado e servido.
Gradações do foie gras
Grau A: é o de melhor qualidade, sem veias nem manchas. Costuma ter cor muito clara, quase esbranquiçada.
Grau B: os lobos são mais pequenos e a cor mais creme. Podem aparecer veias e manchas, que se tornam quase imperceptíveis após a confecção. Costuma largar mais gordura quando é cozinhado.
Grau C: o seu uso restringe-se geralmente aos pâtés e mousses.
Porque eles são bons companheiros
O pão? Um bom companheiro para o foie gras e o pâté de foie. Que tipos de pão? Os clássicos: fatias finas de brioche, de pão de mistura fresco ou de baguette rústica em fatias finas. Faça tostas Melba caseiras e experimente pães menos tradicionais, como o de nozes, cortado em fatias fininhas e levemente torradas. O pão demasiado torrado e crocante pode sobrepôr-se à textura do foie gras, sendo mais indicado para pâtés.
Texto do meu "Grande Livro dos Chefs", editora Quimera, fotos de Nuno Correia e colaboração de 14 chefs de cozinha.
Em Mirando do Corvo, terra do distrito de Coimbra, reclama-se o título de capital da chanfana, uma vez que este prato de cabra velha, vinho, alho, louro e gorduras parece ter nascido no mosteiro de Semide. Mas esta coisa das capitais disto e daquilo qualquer um pode reclamar. Sei lá, por exemplo, Mação reclama-se capital do presunto, Beja poderia ser a capital da Viande des grisons, e por aí fora.
Na quarta feira passada fui à feira de Miranda, que costumava ser interessante, com muita criação, coelhos, muitas mudas de verduras e utensílios agrícolas. Infelizmente, já não é, passou ao alguidar de plástico, às contrafacções e aos trapos. Como quase todas as nossas feiras. O ano passado, em Viana, nas festas da Agonia, a feira era quase toda de senegaleses na contrafacção.
Bom, o desgosto não me tirou a vontade de almoçar e como Miranda não é só chanfana, resolvi optar pelo leitão, uma especialidade da terra.
Na estrada de Miranda do Corvo para Semide (N17-1), no lugar de Carapinhal surge-nos a direita o Rufino dos Leitões. Pare (tem parque próprio) e peça o leitão ao prato ou à travessa .
A confecção do reco é semelhante à da Bairrada, mas, em vez de pimenta, leva malagueta. A justificar desvio em viagem, o leitão exibe pele estaladiça, bem constipada pelo forno de lenha. O sr. Rufino tem boa tesourada, da qual resultam nacos formosos e bem proporcionados, sem carnuça excessiva. A salada era de boa alface francesa, a batata frita em palitos, caseira.
A diária, servida ao dia de semana, inclui sopa do dia (hoje canja), prato do dia (hoje arroz de polvo, cozido à portuguesa ou leitão, sobremesa, bebida e café, tudo por 6,5 euros).
À travessa, o leitão para dois vale 15 euros (duas doses).
O pudim flan, anunciado como de ovos, revelou-se um mandarim convicto, e a salada de fruta tinha a originalidade de ser semeada de rodelas de limão. Vá-se lá saber. cada vez estamos pior de sobremesas em todo o país.
Para a sossega, continua a beber-se bem ao almoço. Por exemplo, este licor de café caseiro, verdadeira armadilha anti ASAE, baralhada pelo rótulo de uísque e a rolha de Ricard.