A PRIMAVERA E O SALMÃO À LAGAREIRO
Chegou finalmente a mais agradável das estações do ano, deixando para trás um Inverno húmido, chuvoso e cinzento, a condizer com a austeridade troiquiana. Com a Primavera chega a mudança de cartas que só faz sentido nos restaurantes que praticam a cozinha de mercado. São eles os que servem produtos frescos da época que se vendem, precisamente, em estabelecimentos de características sazonais como os mercados: peixe da época (em Abril, o besugo, o cherne, a corvina e a dourada são as melhores espécies para consumir), borreguinhos e cordeirinhos (conforme estamos no Sul ou no Norte), fruta (citrinos, sobretudo tangerinas, as nêsperas e as maçãs) e legumes (beldroegas, acelga, aipo, cebolos ou cebolas novas). Está na altura de aproveitar o sabor e a textura dos primores, os primeiros legumes da época. Está, sobretudo, na época de fazermos jus à nossa fama de país de dieta mediterrânea e de começarmos a colocar cada vez mais legumes nas ementas, mesmo dos restaurantes que não mudam de carta o ano todo. Temos óptimos legumes, fruta preciosa, que até constituem uma boa fatia da exportação. Por que razão não parecem mais nos restaurantes? Por que razão ainda temos de gramar a manga e o abacaxi com milhares de quilómetros nos pés e nas ramas quando temos todo o ano maravilhosa fruta da época e da nossa terra? O vasto leque dos nossos legumes não se limita aos brócolos e à cenoura.
Desde os anos 80, a nossa cozinha tem vindo a percorrer um longo caminho que a tornou bem diferente do que era à época. A cozinha burguesa recorria pouco a legumes. Abandonara o consumo popular da omnipresente couve e recorria a umas tristes saladas de folhas de alface moles e de tomate (salvava-se este). Lembro-me dessa década, no Algarve, todos os pratos serem servidos com umas pindéricas e enfrascadas macedónias de cenoura e ervilha, para contentar os “bifes”, já que nem legumes frescos havia em terras sulistas. Para acomodar o turista anglo-saxónico serviam-se (e creio que ainda se servem) as sardinhas assadas façon fish and chips, acompanhadas de palitos de batata frita e guarnecidas com rodelas de limão. Bem, o que lá vai, lá vai, e hoje que bem se come no Algarve, quer nos restaurantes de topo, com a maior concentração de estrelas Michelin do país, quer em casas que recuperaram a saborosa e rica cozinha tradicional.
E agora perguntarão, e o salmão à lagareiro, o que tem a ver com a Primavera? Nada. O salmão à lagareiro não tem a ver com nada, é um exemplo inenarrável de pratos que de vez em quando aparecem num restaurante e que se espalham como fogo na floresta. O polvo e o bacalhau à lagareiro (não confundir com o confitado, em que a proteína é cozida na gordura, enquanto nas confecções à lagareiro, a proteína é cozida ou grelhada para depois se apresentar em banho de imersão de azeite) podem ser pratos de valia, mas têm vindo a tiranizar de tal forma as cartas que aborrecem. Pois agora não é que descobriram o tal salmão à lagareiro, uma contradição nos seus termos. Antes dos tais anos 80, comer salmão, fresco ou fumado, mas sempre selvagem, era um luxo. Fresco, comia-se na sua época vindo dos rios nortenhos, sobretudo do Minho. Em Março, lembro-me muito bem de ver estes peixes de dorso prateado a brilharem à porta do Martins e Costa, a grande mercearia do Chiado, onde tudo aparecia conforme a época, fossem os queijos da serra da Estrela ou as alcachofras. Lembro-me também de o ver tornar mainstream no fim da década de oitenta, principio de 90. Não já o selvagem, claro, mas o de aquicultura, importado lá dos nortes profundos, e cada vez mais barato. É um peixe gordo que não deve ser cozinhado com mais gordura, como parece evidente, mas sim com citrinos, cuja acidez corta essa mesma gordura. O salmão à lagareiro é o exemplo acabado de casamentos contra natura que, de vez em quando, assombram as nossas ementas. Há mais, mas ficam para outra altura.
É Primavera, comam os deliciosos produtos da época e da nossa terra.
Obrigada ao Mário Cerdeira pelas fotos.