Comeres caldosos
Cada cozinheiro, cada caldeirada. Com pimento, sem ele. Com batata, sem ela. Com água do mar, com vinho branco, sem líquido. Em camadas ou tudo misturado. Com este peixe sim, com aquele não. Vale tudo, embora haja uma única regra: quem a faz é quem a deve servir. É possível que o nome caldeirada tenha origem em caldeira ou caldeiro (no Ribatejo, cozer diz-se caldeirar), o recipiente onde costuma ser preparada, mas há quem diga que está ligado a caldo. Faz parte da cozinha regional das regiões costeiras de todo o mundo, com variações dos temperos e dos ingredientes que acompanham o peixe e o marisco: a bouillabaisse francesa, originária do Vieux Port de Marselha, a calderada galega e a caldereta asturiana ou o cacciuco de Livorno. Indispensável em todas elas é a frescura dos produtos.
Os comeres caldosos permitiam o enxugo com o pão, hábito profundamente enraizado nos Portugueses. Da mesma família da caldeirada são os ensopados, sempre acompanhados de pão, e as sopas. A inclusão do pão em ambientes líquidos ficou-nos do tempo dos Árabes. A açorda ou tarîd, descrita num livro de cozinha de Ibn Abd al-Ra’uf, leva água quente, coentros, alho e pedaços de pão, os mesmos ingredientes com que hoje fazemos a nossa açorda alentejana. Lembremo-nos que a batata é um aquisição recente e o arroz, um produto de luxo. Nesta categoria de pratos, muito famosa ficou a Sopa rica de peixe de Lisboa e, nos fins do século XIX, a Sopa de ostras era um petisco muito procurado. Nessa altura, ainda o mar da Palha era rico nestes bivalves, vendidos às dúzias de treze à porta das tabernas, tal era a fartura. O preço incluía ainda o empréstimo do lume para as abrir.
A caldeirada tem origem no mar, no quinhão de peixe atribuído à companha (a tripulação do barco) após cada pescaria. Desse quinhão fariam parte os peixes mais pequenos e com menos valor comercial (sardinha) ou os que estivessem danificados. Ao peixe do rio ou do mar, foram-se juntando alguns produtos recentemente chegados de além-mar, trazidos pelas naus: a batata, o tomate e as malaguetas. Ao almoço comia-se a caldeirada. Ao fim da tarde, quase à vista de terra, o seu caldinho com as sobras do peixe.
A caldeirada teve e tem grandes entusiastas e até pergaminhos reais. Manuel de Guimarães conta em “À Mesa com a História” que D. Afonso, o irmão mais novo do rei D. Carlos, e homem de gostos muito populares, não dispensava uma caldeirada à fragateira. Este príncipe da casa de Bragança rumava a Cascais, para as regatas, ao volante de um dos primeiros automóveis que apareceram em Portugal, acompanhado pelo seu criado, o Ponta da Unha. A função deste era gritar Arreda a todas pessoas que pudessem encontrar-se na temível trajectória de D. Afonso, que ficou carinhosamente conhecido por esta alcunha. Para acompanhar a caldeirada, o príncipe desafinava uns fados.
Cada zona do país tem a sua caldeirada. Umas são simplesmente cozidas, outras têm uma base refogada. Umas levam batata, outras não. Umas levam sardinha, cujo papel é largar os seus sucos e actuar como tempero, outras não. A caldeirada passa dos barcos para as zonas ribeirinhas, como as que abraçavam o Mar da Palha, desde sempre um viveiro de peixe e marisco. No Tejo, o movimento de barcos era muito intenso. Nele se cruzavam os cacilheiros, que levavam as mercadorias para os navios, as fragatas, barcos polivalentes de transporte, os barcos dos moinhos (farinhas) e da água, as bateiras, que transportavam pedra, as faluas e os catraios, que serviam para transporte de passageiros, e as muletas e os saveiros, embarcações de pesca. É das fragatas que a caldeirada à fragateira recebe o seu nome. Em terra, cozia-se massa de cotovelinhos neste caldo e servia-se como sopa. Para esta caldeirada, aproveitavam-se os peixes com menor valor comercial ou os que estavam esmagados ou «menos bonitos», assim como as suas vísceras. Para cozinhar usava-se a água do mar. Mais a montante do rio, a pesca estava por conta dos avieiros. Estes «ciganos do Tejo», como lhe chamava Alves Redol, vinham da praia de Vieira de Leiria à procura de peixe mais farto: sáveis, fataças e enguias. Foram ficando e pela década de 50 instalaram-se em casas palafitas nas margens do rio. Escaroupim, Valada, Palhota são algumas dessas povoações. Quem partiu e nunca mais voltou foi o sável.
Caldeiradas de Norte a Sul
Valendo-nos da preciosa ajuda do Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lurdes Modesto, façamos uma viagem pelas caldeiradas, ensopados e sopas de peixe de Norte a Sul.
Minho e Douro são terras de bacalhaus e lampreia. Na Póvoa do Varzim, vila de pescadores, é famosa a Caldeirada dos Poveiros, onde entram pescada, raia, chicharro, enguias e tainha trazidos destes frios e perigosos mares. Na Póvoa, há uma outra caldeirada típica que não leva batata nem tomate, mas sim muito colorau e vinagre de vinho tinto. Já em Matosinhos, terra das marisqueiras, faz-se uma monocaldeirada de sardinhas.
Em Trás-os-Montes e no Alto Douro, terras do interior, há poucas presenças de sopas ou caldeiradas de peixe. Apenas umas Migas de Bacalhau e alguns peixes de rio. O mesmo se passa nas Beiras Alta e Baixa, onde desta feita se encontra uma Miga de Peixe, feita com bogas ou barbos (peixe de rio), ovos, pão e poejos da ribeira. Em Portas do Ródão, Beira Baixa, come-se uma boa caldeirada de enguias. Quando há sável, os beirões gostam de o juntar com batata numa deliciosa caldeirada.
Na Beira Litoral, em Aveiro, a caldeirada é de enguias e leva um curioso condimento à base de gengibre e pimenta, os «pós de enguia». Mais tarde o gengibre foi substituído por açafrão-da-índia, pela cor. Pensa-se que esta tradição tenha origem na época dos Descobrimentos, quando as naus atracavam neste movimentado porto carregadas de especiarias. Em algumas receitas, que isto de caldeiradas é tudo uma grande caldeirada, as enguias só se juntam depois de as batatas começarem a amaciar, noutras coze tudo ao mesmo tempo. A Canja de Enguias é feita com a água da caldeirada, à qual se junta pão de trigo e de milho ou massinhas.
Em Ovar, preferem fazer ensopado com as enguias. A base é um refogado pouco puxado e, claro, entulhado com pão, desta feita torrado. A Sopa de Peixe à Pescadora é um híbrido destes três conceitos, sopa, caldeirada e ensopado, com uma base refogada. Os peixes são os da ria.
Uma outra tradição da Beira é a Caldeirada dos Mortos ou das Almas. Nos velórios, é costume familiares e amigos trazerem uma canja de galinha e caldeirada. Nesta última, todos os elementos são cozidos em água, que é em seguida despejada; junta-se azeite e alho e tapa-se. Quando se abre o tacho para servir, esta infusão larga um inconfundível cheiro aliáceo. Na costa beirã há ainda quem junte toucinho salgado à caldeirada.
Nas caldeiradas do Ribatejo, o peixe é amanhado com a água do rio e as ovas e os fígados são elementos indispensáveis, sendo em geral colocados, quase no fim da cozedura, sobre o peixe. Costumam levar uma única variedade de peixe. O louro e o colorau não são habituais. A Caldeirada de Sardinhas leva muita tomatada e por cima os ditos peixinhos, só para suarem. Na de enguias deita-se-lhe um jorro de vinagre, tapa-se e abre-se à mesa. Invulgar é a Caldeirada de Bacalhau de Almeirim, que leva chouriços, farinheira e couve, transformando-se numa espécie de cozido à portuguesa versão marítima.
As molhatas são uma espécie de ensopado dos avieiros. Só costumam levar um tipo de peixe e nota-se a ausência dos pimentos. A de barbos, da Praia do Ribatejo, ganha a cor da massa de pimentão. Em matéria de sopas, a de sável reúne as postas de peixe desfiadas, as ovas e a batata, não dispensando fatias de pão para ensopar. A de linguado é típica de Vila Franca e, além dos linguadinhos do rio, é guarnecida com pão e hortelã. Característica dos comeres dos campinos é a Sopa de Bacalhau, o qual coze junto dos legumes mas é servido à parte.
Passemos à Estremadura. Aqui a caldeirada pode ser à Fragateira (Nazaré) ou Rica. Neste caso, para fazer jus ao seu nome, leva tamboril, safio, cação, raia, amêijoas e, extrema finura, um cálice de vinho do Porto. Nesta praia faz-se também uma caldeirada de lulas. Em Setúbal, a caldeirada é comida com colheres de pau.
Na zona de Lisboa, o Mar da Palha, estuário do Tejo, era frequentado por uma grande diversidade de peixes, que aí se vinham reproduzir: douradas, fanecas, robalos, linguados, solhas, ruivos. Do Mar dos Sargaços vinham as enguias e lá regressavam para se reproduzirem. Nas zonas mais próximas do mar, nadava a raia ou arraia e nas águas doces, os barbos, as fataças e as bogas; de natureza mais sedentária eram os biqueirões, os xarrocos, as tainhas. Como à margem sul do Tejo afluíam muitos alentejanos, sobretudo da margem esquerda do Guadiana, de Moura e de Serpa, os ensopados tornaram-se típicos desta região. As caldeiradas são tipicamente de estuário, uma vez que nelas coexistem peixes de água de mar e de rio, sempre extremosamente frescos. Desejáveis são também os fígados de alguns peixes, como o safio e o cação, levemente cozidos em caldos perfumados com uma folhinha de hortelã e encorpados pela massa de cotovelinhos. Muito apreciada nos restaurantes lisboetas, a Sopa Rica de Peixe ganhou os seus pergaminhos à custa do marisco.
No Alentejo, o peixe nada nas sopas, geralmente engrossadas com farinha e desagoniadas com vinagre. Com menos água, a de cação transforma-se no emblemático Cação de Coentrada. Ainda nas sopas, o bacalhau casa bem com poejos. Além do pão, os característicos ensopados herdados dos árabes costumam levar coentros.
A Caldeirada Rica do Algarve leva muitos e finos peixes e tem um pormenor curioso: por cima da última camada, a das sardinhas, espalham-se umas colheradas de manteiga, que irá embeber nas fatias de pão com que se remata. Além desta, há inúmeras sopas de lingueirão e de outros bivalves. As caldeiradas variam de barco para barco, mas têm presença obrigatória do rascasso, ou galinha-do-mar, e do pata-roxa, ou caneja, uma espécie de tubarão.
Nas ilhas, e como não podia deixar de ser, o peixe também é rei. Nos Açores, é célebre o Caldo de Peixe, onde se fazem notar as influências das especiarias que por ali passavam nas naus das descobertas em direcção aos novos mundos: pimenta-da-jamaica, açafrão-da-índia, malagueta e, em alguns casos, cominhos. Já na Madeira, a Caldeira de Espada tem como base um refogado, sendo o caldo servido à parte. O peixe acompanha com batata-doce e, por vezes, com o omnipresente milho. Como tempero usa-se a pimenta-da-jamaica, aqui conhecida por alcepás.
Remato esta viagem pelo país com um conselho: faça caldeiradas. É um prato muito fácil e extremamente versátil que suja apenas um tacho e ao qual cada um pode transmitir um toque pessoal e criativo.
Os Porquês
Porque razão se pode fazer primeiro a base dos legumes e só depois acrescentar o peixe? Quem não gosta do peixe muito cozido, deve fazer primeiro as camadas de legumes e cozê-los cerca de 15 minutos, sem os mexer. A cerca de 10 a 15 minutos do fim, junta-se o peixe.
Por que razão a caldeirada se coze tapada? Para que os vapores se condensem no local mais frio, a tampa, e a humidade volte a cair no tacho. Desta forma, os sabores não se perdem.
Por que razão, quando se usam, os bivalves são colocados em primeiro lugar? Porque a ordem dos ingredientes não é arbitrária: no fundo devem ser colocados os que melhor resistem ao calor.