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Conversas à Mesa

AS AREIAS DE MARIA DE LOURDES MODESTO

Tudo começou com uma gordura alva como a neve, uma dádiva do porco de raça  alentejana. Mais precisamente do véu que lhe segura os intestinos e que recebe os nomes de rissol, entretinho ou redenho. É daqui que se fazem os torresmos de rissol que, quando são bem secos, ficam estaladiços e deliciosos. Foi daqui que em casa se fez a banha que constituiu a gordura base das areias de Cascais. Foi o entretém de uma divertida tarde já desta semana de duas mulheres que gostam de cozinha: A Maria de Lourdes Modesto e eu. Depois foi deliciarmo-nos ao lanche, saboreando a gostosa sensação de uma massa areada que se derrete na boca e contrasta com a areia de açúcar pilé. Aqui ficam as fotos, a receita e as técnicas que a Maria de Lourdes me passou e que partilho convosco.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Areias de Cascais

Receita de Maria de Lourdes Modesto

 

250 g de farinha

50 g de açúcar pilé

100 g de banha

50 g de manteiga

açúcar pilé e canela (opcional) para polvilhar

farinha para o garfo

 

Peneira a farinha e o açúcar para uma tigela. Junte as gorduras frias e em bocadinhos e misture-as com a ponta dos dedos, de modo a obter uma areia grossa.

Empurre a massa contra a bancada (três vezes) de modo a que todos os elementos se misturem, mas sem que a massa fique elástica (os franceses chamam-lhe “fraiser la pâte”).

Faça uma bola, embrulhe em película plástica e leve 15-30 minutos ao frigorífico.

 

Aqueça o forno a 160ºC/170ºC.

Faça bolinhas de massa com o tamanho de nozes. Coloque-as num tabuleiro forrado com papel vegetal ou num silpat.

Com um garfo passado na farinha, achate as bolinhas. Leve-as ao forno durante 10 a 15 minutos. estão prontas quando a parte de baixo tiver ganho cor, mas as areias ainda estiverem esbranquiçadas ( a ideia é ficarem... cor de areia).

 

Logo que possa tocar-lhes com as mãos passe-as no açúcar ou mistura de canela e açúcar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

COMER O 25 DE ABRIL

 

 

 

 

 

 

 

Não há celebrações para nós portugueses que não passem pelos morfes. Porque a conversa flui melhor à mesa, porque comer em companhia é para nós um luxo, porque um copo de vinho solta as emoções. Aqui ficam algumas sugestões revolucionárias para duas refeições comemorativas em conta e uma menos em conta. 

 

 

 

A janela para a R. da Misericórida

 A vista do bar, para a R. das Gáveas

 

 

 

 

 

 

 

 A vista do bar, para a R. das Gáveas

 

O prato do dia: feijoada de lulas

 

Entre os 15 e os 25 euros

Almoço com os capitães

Associação 25 de Abril

Fica muito bem situada, em plena Rua da Misericórdia, do lado esquerdo e quem sobe. A casa de jantar é no primeiro andar, procure ficar numa mesa mesmo junto das belíssimas janelas que dão para a rua. Há pratos do dia e uma ementa fixa. Desta última consta uma empada de caça como entrada, bochechas de porco, de prato principal, entre outros. No dia em que estive, o prato fixo era feijoada de lulas, que estava apetitosa. A não perder, o bar onde se pode tomar um aperitivo e o café e, atenção fumadores, puxar grandes fumaçadas.  A vista do bar para a Rua das Gáveas é a não perder.

Os pratos principais ficam entre 10 e 15, o que não é barato para o tipo de restaurante, mas o cozinheiro tem mão e o ambiente é engraçado e os comensais sempre interessantes.

 

 

R. Da Misericórdia 95, 1º andar

1220-271 Lisboa

Fecha: Domingos

Telefone: 213241420

 

 

A cozinheira e proprietária, D. Helena
Antro de lampiões
Bochechas de porco com esparregado

 Bife com batatas e ovo

 

 

 

 

 

 

 

Defender a Paz em Abril

Restaurante A Paz

 

Casa familiar, herdado do pai do proprietário. Na cozinha está a esmerada e lindíssima Dona Helena, na mesa o pai e o filho. Há sempre pratos do dia (excepto à segunda)  que os habitués recebem por SMS. Há pratos vendidos à meia dose, suficiente para uma criatura de apetite médio. Refeição muito agradável, bom ambiente, muito dado ao vermelho da lampionagem, bem patente nas paredes.

O restaurante tem duas vertentes, a do peixe fresco e a da cozinha de tacho. Não se limitam a grelhar o peixe, também o cozem e fritam, opções cada vez mais raras num restaurante. A pescada cozida com todos é um prato muito nosso, muito saudável e rico em sabores, que deveria aparecer mais nos restaurantes de peixe. Aqui uma dose custa 13,80 euros, assim como a de peixe frito (meia dose, 10,00 euros). A pescada frita com arroz de feijão e feijão verde cozido estava como desejado, assim como as bochechas de porco com a batata frita aos quadradinhos e esparregado (prato do dia). O bife (12,80) da vazia cumpriu, como diria o José Quitério, acompanhado de belíssima batata frita às rodelas sequinhas e ovo a cavalo. A única sobremesa que provei, as farófias, foram uma desilusão. Como é possível num restaurante com uma boa cozinheira servir as farófias com um creme postiço de qualidade inenarrável?

 

 

 

 

 

Largo da Paz, 22 B

1300-450 Lisboa

Telefone: 213631915

Fecha: Feriados, Sábados e Domingos

 

 

 

 

 Janela para o mar/Tejo

 

 

 

 

 A bonita casa de jantar, notando-se a ausência do panejamento

 

 

 

 Salada de bacalhau com azeitona (amuse bouche)

 

 

 

 

 

Pastéis de massa tenra
Filetes de polvo com creme de espinafre
Favas com codorniz

 Chocolate e leite de noz

 

 

 

 

 

 

 

A partir de 30, com o prato do dia

Horizontes de liberdade em Abril

 

Inevitável - Vila Galé Paço de Arcos

 

Instalado no palácio quinhentista dos Arcos, que estava a cair da tripeça antes desta belíssima recuperação, o restaurante tem uma vista soberba para o Tejo/mar. O hotel tem como tema a poesia, não deixe de visitar o jardim e uma escultura muito especial que reúne à mesa vários dos nossos poetas.

O restaurante tem uma decoração agradável de casa abastada, com muitos óleos nas paredes. Um reparo para a desadequada e desagradável ausência de toalha, repousando talheres e pratos sobre a bonita madeira da mesa. Pode também almoçar-se no exterior. Eu escolhi uma mesa no interior mesmo em frente a uma porta para a varanda e para os magníficos horizontes de liberdade. Todos os dias há prato especial, que vai das favinhas com codorniz (quartas-feiras) aos pastéis de massa tenra (Domingos). Provei os dois: as favinhas muito apaladadas e bem puxadas, os pasteis de massa tenra bem, como a massa fina e o recheio em carapinha de carne, como compete, e não em pasta. Um reparo: de tamanho um pouco acatitado. Comi ainda os filetes de polvo: os tentáculos panados e crocantes acompanhados com creme de espinafre e tomate cereja. À sobremesa, uma deliciosa tarte de chocolate com leite de noz.

 

 

Largo Conde das Alcáçovas

2770-031 Paço de Arcos

Telefone: 210493200

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A MESA DA PÁSCOA

 

 

 

 

 

 

Em matéria de civilizações clássicas, passei de uma profunda admiração pelos Gregos, cuja Filosofia se estudava detalhadamente nos meus tempos de jovem, para uma apreciação tranquila dos Romanos e da sua organização social.

Quando se trata de comida, acho-os exemplares. A propósito dos excessos que fazemos por altura das festas, sendo o Domingo de Páscoa uma das fortes, recordo sempre a distinção que os Romanos faziam entre o banquete, uma ocasião extraordinária, e a comida do dia-a-dia, entre a cena e o prandium.  Para Roma era na frugalidade do dia-a-dia, em que apenas se comia quando era fisicamente necessário, um bocado de pão, umas azeitonas, uns figos secos, que se conhecia a grandeza do homem, que não se desvia do trabalho ou da guerra para o prazer da comida ou da convivência. Pelo contrário, na cena, no banquete, é impossível cometer excessos porque todos são permitidos. São refeições de ócio e de partilha social. Trata-se da oposição e complementaridade do necessário versus o supérfluo.

 

 

 

 

 

 

 

Creio que a alimentação romana não seria a mais saudável, sobretudo na parte dos excessos, mas a frugalidade é a base da alimentação mediterrânea: pouquíssimas proteínas, sobretudo em matéria de carnes, fruta, legumes, pão e vinho. Os países ricos sofrem de excesso no dia-a-dia.

Cada vez queremos, ou podemos?,  dedicar menos tempo a cozinhar, o que nos leva a optar pelos alimentos processados, progressivamente mais baratos em relação aos frescos, mas tão prejudiciais para a saúde.

 Por outro lado, vem-se instalando um culto da comida e da mesa, que ocupam a maior parte do nosso tempo de lazer. Cada vez queremos passar mais tempo à mesa e menos na cozinha. Nunca se venderam tantos livros de receitas e se cozinhou tão pouco. Nunca houve tanto show de cozinha e tão pouca cozinha.

O que nos podem então ensinar os Romanos? Mais frugalidade no quotidiano, mais frescos e menos proteínas. Mas também um grande prazer nas festas, ocasião de alguns excessos e de muito convívio. Célebre-se então o Domingo de Páscoa o melhor e mais fartamente que se possa, sentados ou de triclinium, e sobretudo em boa companhia. Cozinhem-se em casa os anhos e os cabritos pascais temperados e assados a preceito, as bolas de carne e os folares. Que prazer é cozinhar em família e com os amigos, para depois nos sentarmos todos à mesa.

Boa Páscoa, boa festa.

A propósito, vejam aqui no blog a receita do folar da minha avó transmontana.  de comida, acho-os exemplares. A propósito dos excessos que fazemos por altura das festas, sendo o Domingo de Páscoa uma das fortes, recordo sempre a distinção que os Romanos faziam entre o banquete, uma ocasião extraordinária, e a comida do dia-a-dia, entre a cena e o prandium.  Para Roma era na frugalidade do dia-a-dia, em que apenas se comia quando era fisicamente necessário, um bocado de pão, umas azeitonas, uns figos secos, que se conhecia a grandeza do homem, que não se desvia do trabalho ou da guerra para o prazer da comida ou da convivência. Pelo contrário, na cena, no banquete, é impossível cometer excessos porque todos são permitidos. São refeições de ócio e de partilha social. Trata-se da oposição e complementaridade do necessário versus o supérfluo.

 

Creio que a alimentação romana não seria a mais saudável, sobretudo na parte dos excessos, mas a frugalidade é a base da alimentação mediterrânea: pouquíssimas proteínas, sobretudo em matéria de carnes, fruta, legumes, pão e vinho. Os países ricos sofrem de excesso no dia-a-dia.

Cada vez queremos, ou podemos?,  dedicar menos tempo a cozinhar, o que nos leva a optar pelos alimentos processados, progressivamente mais baratos em relação aos frescos, mas tão prejudiciais para a saúde.

 Por outro lado, vem-se instalando um culto da comida e da mesa, que ocupam a maior parte do nosso tempo de lazer. Cada vez queremos passar mais tempo à mesa e menos na cozinha. Nunca se venderam tantos livros de receitas e se cozinhou tão pouco. Nunca houve tanto show de cozinha e tão pouca cozinha.

 

 

 

 

 

O que nos podem então ensinar os Romanos? Mais frugalidade no quotidiano, mais frescos e menos proteínas. Mas também um grande prazer nas festas, ocasião de alguns excessos e de muito convívio. Célebre-se então o Domingo de Páscoa o melhor e mais fartamente que se possa, sentados ou de triclinium, e sobretudo em boa companhia. Cozinhem-se em casa os anhos e os cabritos pascais temperados e assados a preceito, as bolas de carne e os folares. Que prazer é cozinhar em família e com os amigos, para depois nos sentarmos todos à mesa.

Boa Páscoa, boa festa.

A propósito, vejam aqui no blog a receita do folar da minha avó transmontana: http://conversasamesa.blogs.sapo.pt/39590.html

 

 

 

GRANDES CALDEIRADAS

Comeres caldosos

 

Cada cozinheiro, cada caldeirada. Com pimento, sem ele. Com batata, sem ela. Com água do mar, com vinho branco, sem líquido. Em camadas ou tudo misturado. Com este peixe sim, com aquele não. Vale tudo, embora haja uma única regra: quem a faz é quem a deve servir. É possível que o nome caldeirada tenha origem em caldeira ou caldeiro (no Ribatejo, cozer diz-se caldeirar), o recipiente onde costuma ser preparada, mas há quem diga que está ligado a caldo. Faz parte da cozinha regional das regiões costeiras de todo o mundo, com variações dos temperos e dos ingredientes que acompanham o peixe e o marisco: a bouillabaisse francesa, originária do Vieux Port de Marselha, a calderada galega e a caldereta asturiana ou o cacciuco de Livorno. Indispensável em todas elas é a frescura dos produtos.

Os comeres caldosos permitiam o enxugo com o pão, hábito profundamente enraizado nos Portugueses. Da mesma família da caldeirada são os ensopados, sempre acompanhados de pão, e as sopas. A inclusão do pão em ambientes líquidos ficou-nos do tempo dos Árabes. A açorda ou tarîd, descrita num livro de cozinha de Ibn Abd al-Ra’uf, leva água quente, coentros, alho e pedaços de pão, os mesmos ingredientes com que hoje fazemos a nossa açorda alentejana. Lembremo-nos que a batata é um aquisição recente e o arroz, um produto de luxo. Nesta categoria de pratos, muito famosa ficou a Sopa rica de peixe de Lisboa e, nos fins do século XIX, a Sopa de ostras era um petisco muito procurado. Nessa altura, ainda o mar da Palha era rico nestes bivalves, vendidos às dúzias de treze à porta das tabernas, tal era a fartura. O preço incluía ainda o empréstimo do lume para as abrir.

A caldeirada tem origem no mar, no quinhão de peixe atribuído à companha (a tripulação do barco) após cada pescaria. Desse quinhão fariam parte os peixes mais pequenos e com menos valor comercial (sardinha) ou os que estivessem danificados. Ao peixe do rio ou do mar, foram-se juntando alguns produtos recentemente chegados de além-mar, trazidos pelas naus: a batata, o tomate e as malaguetas. Ao almoço comia-se a caldeirada. Ao fim da tarde, quase à vista de terra, o seu caldinho com as sobras do peixe.

 

A caldeirada teve e tem grandes entusiastas e até pergaminhos reais. Manuel de Guimarães conta em “À Mesa com a História” que D. Afonso, o irmão mais novo do rei D. Carlos, e homem de gostos muito populares, não dispensava uma caldeirada à fragateira. Este príncipe da casa de Bragança rumava a Cascais, para as regatas, ao volante de um dos primeiros automóveis que apareceram em Portugal, acompanhado pelo seu criado, o Ponta da Unha. A função deste era gritar Arreda a todas pessoas que pudessem encontrar-se na temível trajectória de D. Afonso, que ficou carinhosamente conhecido por esta alcunha. Para acompanhar a caldeirada, o príncipe desafinava uns fados.

 

Cada zona do país tem a sua caldeirada. Umas são simplesmente cozidas, outras têm uma base refogada. Umas levam batata, outras não. Umas levam sardinha, cujo papel é largar os seus sucos e actuar como tempero, outras não. A caldeirada passa dos barcos para as zonas ribeirinhas, como as que abraçavam o Mar da Palha, desde sempre um viveiro de peixe e marisco. No Tejo, o movimento de barcos era muito intenso. Nele se cruzavam os cacilheiros, que levavam as mercadorias para os navios, as fragatas, barcos polivalentes de transporte, os barcos dos moinhos (farinhas) e da água, as bateiras, que transportavam pedra, as faluas e os catraios, que serviam para transporte de passageiros, e as muletas e os saveiros, embarcações de pesca. É das fragatas que a caldeirada à fragateira recebe o seu nome. Em terra, cozia-se massa de cotovelinhos neste caldo e servia-se como sopa. Para esta caldeirada, aproveitavam-se os peixes com menor valor comercial ou os que estavam esmagados ou «menos bonitos», assim como as suas vísceras. Para cozinhar usava-se a água do mar. Mais a montante do rio, a pesca estava por conta dos avieiros. Estes «ciganos do Tejo», como lhe chamava Alves Redol, vinham da praia de Vieira de Leiria à procura de peixe mais farto: sáveis, fataças e enguias. Foram ficando e pela década de 50 instalaram-se em casas palafitas nas margens do rio. Escaroupim, Valada, Palhota são algumas dessas povoações. Quem partiu e nunca mais voltou foi o sável.

 

 

Caldeiradas de Norte a Sul

Valendo-nos da preciosa ajuda do Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lurdes Modesto, façamos uma viagem pelas caldeiradas, ensopados e sopas de peixe de Norte a Sul.

Minho e Douro são terras de bacalhaus e lampreia. Na Póvoa do Varzim, vila de pescadores, é famosa a Caldeirada dos Poveiros, onde entram pescada, raia, chicharro, enguias e tainha trazidos destes frios e perigosos mares. Na Póvoa, há uma outra caldeirada típica que não leva batata nem tomate, mas sim muito colorau e vinagre de vinho tinto. Já em Matosinhos, terra das marisqueiras, faz-se uma monocaldeirada de sardinhas.

Em Trás-os-Montes e no Alto Douro, terras do interior, há poucas presenças de sopas ou caldeiradas de peixe. Apenas umas Migas de Bacalhau e alguns peixes de rio. O mesmo se passa nas Beiras Alta e Baixa, onde desta feita se encontra uma Miga de Peixe, feita com bogas ou barbos (peixe de rio), ovos, pão e poejos da ribeira. Em Portas do Ródão, Beira Baixa, come-se uma boa caldeirada de enguias. Quando há sável, os beirões gostam de o juntar com batata numa deliciosa caldeirada.

Na Beira Litoral, em Aveiro, a caldeirada é de enguias e leva um curioso condimento à base de gengibre e pimenta, os «pós de enguia». Mais tarde o gengibre foi substituído por açafrão-da-índia, pela cor. Pensa-se que esta tradição tenha origem na época dos Descobrimentos, quando as naus atracavam neste movimentado porto carregadas de especiarias. Em algumas receitas, que isto de caldeiradas é tudo uma grande caldeirada, as enguias só se juntam depois de as batatas começarem a amaciar, noutras coze tudo ao mesmo tempo. A Canja de Enguias é feita com a água da caldeirada, à qual se junta pão de trigo e de milho ou massinhas.

Em Ovar, preferem fazer ensopado com as enguias. A base é um refogado pouco puxado e, claro, entulhado com pão, desta feita torrado. A Sopa de Peixe à Pescadora é um híbrido destes três conceitos, sopa, caldeirada e ensopado, com uma base refogada. Os peixes são os da ria.

Uma outra tradição da Beira é a Caldeirada dos Mortos ou das Almas. Nos velórios, é costume familiares e amigos trazerem uma canja de galinha e caldeirada. Nesta última, todos os elementos são cozidos em água, que é em seguida despejada; junta-se azeite e alho e tapa-se. Quando se abre o tacho para servir, esta infusão larga um inconfundível cheiro aliáceo. Na costa beirã há ainda quem junte toucinho salgado à caldeirada.

Nas caldeiradas do Ribatejo, o peixe é amanhado com a água do rio e as ovas e os fígados são elementos indispensáveis, sendo em geral colocados, quase no fim da cozedura, sobre o peixe. Costumam levar uma única variedade de peixe. O louro e o colorau não são habituais. A Caldeirada de Sardinhas leva muita tomatada e por cima os ditos peixinhos, só para suarem. Na de enguias deita-se-lhe um jorro de vinagre, tapa-se e abre-se à mesa. Invulgar é a Caldeirada de Bacalhau de Almeirim, que leva chouriços, farinheira e couve, transformando-se numa espécie de cozido à portuguesa versão marítima.

As molhatas são uma espécie de ensopado dos avieiros. Só costumam levar um tipo de peixe e nota-se a ausência dos pimentos. A de barbos, da Praia do Ribatejo, ganha a cor da massa de pimentão. Em matéria de sopas, a de sável reúne as postas de peixe desfiadas, as ovas e a batata, não dispensando fatias de pão para ensopar. A de linguado é típica de Vila Franca e, além dos linguadinhos do rio, é guarnecida com pão e hortelã. Característica dos comeres dos campinos é a Sopa de Bacalhau, o qual coze junto dos legumes mas é servido à parte.

Passemos à Estremadura. Aqui a caldeirada pode ser à Fragateira (Nazaré) ou Rica. Neste caso, para fazer jus ao seu nome, leva tamboril, safio, cação, raia, amêijoas e, extrema finura, um cálice de vinho do Porto. Nesta praia faz-se também uma caldeirada de lulas. Em Setúbal, a caldeirada é comida com colheres de pau.

Na zona de Lisboa, o Mar da Palha, estuário do Tejo, era frequentado por uma grande diversidade de peixes, que aí se vinham reproduzir: douradas, fanecas, robalos, linguados, solhas, ruivos. Do Mar dos Sargaços vinham as enguias e lá regressavam para se reproduzirem. Nas zonas mais próximas do mar, nadava a raia ou arraia e nas águas doces, os barbos, as fataças e as bogas; de natureza mais sedentária eram os biqueirões, os xarrocos, as tainhas. Como à margem sul do Tejo afluíam muitos alentejanos, sobretudo da margem esquerda do Guadiana, de Moura e de Serpa, os ensopados tornaram-se típicos desta região. As caldeiradas são tipicamente de estuário, uma vez que nelas coexistem peixes de água de mar e de rio, sempre extremosamente frescos. Desejáveis são também os fígados de alguns peixes, como o safio e o cação, levemente cozidos em caldos perfumados com uma folhinha de hortelã e encorpados pela massa de cotovelinhos. Muito apreciada nos restaurantes lisboetas, a Sopa Rica de Peixe ganhou os seus pergaminhos à custa do marisco.

 

 

No Alentejo, o peixe nada nas sopas, geralmente engrossadas com farinha e desagoniadas com vinagre. Com menos água, a de cação transforma-se no emblemático Cação de Coentrada. Ainda nas sopas, o bacalhau casa bem com poejos. Além do pão, os característicos ensopados herdados dos árabes costumam levar coentros.

A Caldeirada Rica do Algarve leva muitos e finos peixes e tem um pormenor curioso: por cima da última camada, a das sardinhas, espalham-se umas colheradas de manteiga, que irá embeber nas fatias de pão com que se remata. Além desta, há inúmeras sopas de lingueirão e de outros bivalves. As caldeiradas variam de barco para barco, mas têm presença obrigatória do rascasso, ou galinha-do-mar, e do pata-roxa, ou caneja, uma espécie de tubarão.

Nas ilhas, e como não podia deixar de ser, o peixe também é rei. Nos Açores, é célebre o Caldo de Peixe, onde se fazem notar as influências das especiarias que por ali passavam nas naus das descobertas em direcção aos novos mundos: pimenta-da-jamaica, açafrão-da-índia, malagueta e, em alguns casos, cominhos. Já na Madeira, a Caldeira de Espada tem como base um refogado, sendo o caldo servido à parte. O peixe acompanha com batata-doce e, por vezes, com o omnipresente milho. Como tempero usa-se a pimenta-da-jamaica, aqui conhecida por alcepás.

Remato esta viagem pelo país com um conselho: faça caldeiradas. É um prato muito fácil e extremamente versátil que suja apenas um tacho e ao qual cada um pode transmitir um toque pessoal e criativo.

 

 

Os Porquês

 

Porque razão se pode fazer primeiro a base dos legumes e só depois acrescentar o peixe?  Quem não gosta do peixe muito cozido, deve fazer primeiro as camadas de legumes e cozê-los cerca de 15 minutos, sem os mexer. A cerca de 10 a 15 minutos do fim, junta-se o peixe.

 

Por que razão a caldeirada se coze tapada? Para que os vapores se condensem no local mais frio, a tampa, e a humidade volte a cair no tacho. Desta forma, os sabores não se perdem.

Por que razão, quando se usam,  os bivalves são colocados em primeiro lugar? Porque a ordem dos ingredientes não é arbitrária: no fundo devem ser colocados os que melhor resistem ao calor.

 

 

 

 

 

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