Quando vejo um bacalhau, lembro-me invariavelmente do filme «A Quimera do Ouro», em que um esfomeado Charlie Chaplin come solas de sapato carinhosamente cozidas. É um milagre que aquele triângulo seco possa ser transformado em 1001 apetitosas iguarias que dariam para Sherazade satisfazer o apetite do seu rei ao longo de 1001 noites e quiçá salvar a vida sem precisar de perder tempo com 1001 histórias. E como é que um peixe que, fresco, tem um ar tão escorreito e nada nas águas de mares tão longínquos pode chegar àquele preparo e ao nosso prato?
O bacalhau que os Portugueses preferem é o da espécie Gadus morhua (do grego «gados», que significa pescada). Nada em águas frias superficiais e tem o maxilar superior mais saliente que o inferior, a barbatana dorsal dividida em três e a caudal recta. É um peixe magro, cuja gordura se concentra no fígado, a sede do malfadado óleo que algumas gerações sacrificadas ainda tiveram de comer à colherada.
Para nós, o bacalhau está emocionalmente ligado à saga dos lugres e dos patachos, os bacalhoeiros que pescaram durante décadas ao largo da Terra Nova e da Gronelândia. Destes barcos saíam os pequenos dóris, umas chatas com cerca de 4 m tripuladas por um único homem. Dotadas de uma vela e um par de remos, chegavam a afastar-se mais de 500 m para lançarem as linhas ao mar. As campanhas do Atlântico Norte duravam seis a sete extenuantes meses passados em espaços exíguos, ao longo dos quais os homens tomavam um total de dois banhos e mudavam de roupa de quinze em quinze dias. O bacalhau era salgado a bordo, no fundo dos escuros porões onde jazia uma pantagruélica porção de sal. Os salgadores recebiam mais alguns tostões para, mãos nuas e gretadas pelo frio, salgarem o bacalhau: um pouco mais nos sítios altos e a diminuir para o lado do rabo. Quando os barcos chegavam, o peixe ia directamente para as secas ao ar livre. As condições de secagem do nosso país nunca foram as ideais devido ao vento muito húmido e ao sol demasiado quente.
Bacalhau à Gomes de Sá por Bertílio Gomes, em Portugal, o Melhor Peixe do Mundo. Foto de Mário Cerdeira
A história de uma estranha relação
A admiração perante uma amizade entre os Portugueses e um peixe que não existia na nossa vastíssima costa e nos chegava de mares tão longínquos não cessa, mas pode ser mitigada por um pouco da história do nosso fiel amigo. Ainda não éramos um reino, já pelas nossas costas andavam os Viquingues, que navegaram nos seus aerodinâmicos drakkars até à Terra Nova, Gronelândia e Costa do Labrador. Na falta do sal, secavam o bacalhau ao sol, até o desidratarem. Davam-lhe duas utilizações: consumiam-no nas suas longas viagens pelo mar e comerciavam-no. No século XI, os Bascos vulgarizaram a salga do bacalhau, prolongando ainda mais a vida deste peixe, e tomaram conta do seu comércio. Ao contrário dos animais, que estão presos ao seu meio ambiente, o homem pode afastar-se desde que seja capaz de prolongar o tempo de vida dos alimentos. A salga e/ou secagem do bacalhau é uma das condições que possibilitam as longas viagens pelo mar. Curiosamente, séculos mais tarde, quando foi inventada a congelação profunda, o bacalhau foi um dos primeiros produtos a ser alvo deste processo.
A localização dos bancos de bacalhau era um segredo bem guardado que os Bascos nunca revelaram. Portugueses (João Vaz Corte-Real), Franceses (Jacques Cartier) e Ingleses (John Cabot) reclamaram a descoberta de um local rico em bancos de bacalhau, a Terra Nova, na foz do rio S. Lourenço. Jacques Cartier parece ter encontrado perto desse local uma grande concentração de barcos de pesca bascos. Para este povo, guardar o segredo dos bancos de bacalhau seria bem mais importante do que anunciar a descoberta de um novo continente.
Na época dos Descobrimentos, passámos de pescadores a navegadores. O rei D. Manuel serviu-se dos impostos lançados sobre o bacalhau para financiar algumas viagens, mas o esforço das Descobertas foi prejudicial para a pesca. O primeiro documento regulador desta actividade, o Regimento Português para as Frotas de Pesca do Bacalhau, data do reinado de D. Sebastião. Durante a ocupação espanhola dos Filipes, a nossa frota bacalhoeira foi requisitada para engrossar as fileiras da Invencível Armada, derrotada pelos navios de Isabel I de Inglaterra e totalmente dizimada. Esta pesca, que fora uma actividade tão florescente, ficará em águas de bacalhau durante muitos e muitos anos, até ao século XIX.
Foram os nossos eternos aliados, os Ingleses, quem enriqueceu à custa do negócio do bacalhau, de tal forma que estes comerciantes chegavam a emprestar dinheiro aos nossos reis. Por alturas dos jejuns religiosos, Quaresma e abundantes dias santos, não havia peixe fresco que chegasse para os mais abastados e os outros viam-se obrigados a recorrer ao bacalhau seco. Para cá, sobretudo do porto de Bristol, vinham as naus inglesas carregadas do versátil peixe que fazia lamber os beiços aos Portugueses forçados a jejuar, para lá levavam um outro produto que fazia lamber os beiços dos hereges ingleses, o vinho do Porto. Era o dois em um. No século XVII, em épocas de maior carência e consequente carestia, as autoridades municipais chegaram a comprar grandes carregos de bacalhau para lhe poderem controlar o preço, ardil de mercado que se repetiria interminavelmente nos séculos subsequentes.
Ao longo da nossa história, o bacalhau foi sempre o fiel amigo dos menos endinheirados, mais pelo seu elevado rendimento do que pelo baixo preço. Por isso, talvez não seja de estranhar que este peixe não aparecesse no primeiro receituário português conhecido, o chamado Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, destinado às cozinhas reais. O códice, redigido no século XV por dois autores, fazia parte da bagagem desta neta do rei D. Manuel I, dada em casamento a Alexandre Farnesio, Duque de Parma. Nessa época, o atum e o salmão eram os peixes mais consumidos nas casas abastadas, salgados, secos ou fumados. Das receitas do Arte de Cozinha, um tratado de 1680 da autoria de Domingos Rodrigues, cozinheiro de D. Pedro II, só um décimo era de peixe e nenhuma de bacalhau. Contudo, encontra-se uma para a sardinha, outro peixe extremamente popular.
Mesmo no finzinho do século XVIII, surge um outro tratado, o Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, de Lucas Rigaud, um cozinheiro francês contratado por D. Maria I. Neste, o peixe ganha autonomia e passa a ser servido mesmo nos «dias de carne», muitas vezes combinado com esta. A percentagem de receitas de peixe sobe quase para o dobro; nelas se cruzam mais de vinte espécies piscícolas, entre elas o bacalhau. Contudo, são mais as receitas à base de tartaruga do que de bacalhau!
A partir do século XIX torna-se frequente o aparecimento deste peixe na mesa dos mais endinheirados, sobretudo em receitas elaboradas e combinado com ingredientes nobres. É nesta época que o bacalhau consolida a sua sagrada aliança com um tubérculo vindo das Américas, a batata, sendo este casamento abençoado pelo sacrossanto azeite. Apesar das várias crises, nunca o Português abandonou o seu fiel amigo, que hoje cada vez mais vai à mesa de conceituados chefs.