COZINHA EM MERCADO
É louvável a iniciativa da TimeOut de dar nova vida à Praça da Ribeira, no seguimento de outras recuperações de mercados, como o do Bom Sucesso, no Porto, ou o de Campo de Ourique em Lisboa. Possivelmente, o edifício ruiria um destes dias caso o não tivessem feito. Ali abriram as suas “pontas de lança” inúmeros chefes conhecidosda nossa praça. Pena é que o mercado não possa ser salvo. Pena que só haja restauração, tipo food court dos centros comerciais, e não haja bom produto fresco a ser directamente utilizado pela restauração. Não precisamos de ir muito longe, apenas aqui à vizinha Barcelona, para vermos um modelo de bom funcionamento de praça e restauração: o Mercat de la Boqueria.
Os nossos mercados, praças e feiras praticamente desapareceram. Ainda me recordo, por exemplo, da feira de Miranda do Corvo, onde ainda há alguns anos se vendiam toda a espécie de ave de pena. Hoje, Miranda é um coio de madinchina, só se vêm alguidares de plástico e soutiens e cuecas, e quem queira comprar alguma coisa portuguesa terá de se dirigir a outro lado
. Ou de quando a feira de Santarém não era apenas uma espécie de quinta pedagógica onde se levam as crianças a ver os mémés, mas ali se fazia negocio agrícola do grosso. Hoje, a feira ribeirinha de Viana do Castelo por altura das magníficas festas da Senhora da Agonia é um antro da contrafacção, barraca após barraca de senegaleses a venderem carteiras Xanel e Cucci.
Os nossos mercados alimentares desapareceram, as praças estão em agonia. A grande distribuição tomou as rédeas do poder em todo o lado, não deixando espaço senão para as mercearias gourmets.
A conversa que hoje está muito em moda da interacção dos chefes com os pequenos produtores fica-se pela conversa. Ou não há produto, ou não há consistência de produto, ou não há chef e acaba por se comprar tudo na Makro, que sempre oferece preço e regularidade.
Para matar saudades, aqui fica uma pequena história da praça da Ribeira, velhinha de mais de 700 anos de funcionamento, que hoje parece ter chegado ao fim. Do tempo em que havia cozinha de mercado e não cozinha em mercado.
O Palácio da Ribeira, desaparecido no terramoto de 1755
A História da Praça da Ribeira
Quando D. Manuel I (1469-1521), de cognome o Venturoso, mas conhecido na Europa como o Rei da Pimenta, mudou a residência da corte do Paço de Alcáçovas para o Paço da Ribeira, numa manobra centralizadora do aparelho do estado, a zona ribeirinha passou a ser o coração da cidade, virado para o mar e os Achamentos. Ali se instalaram o estaleiro da Ribeira das Naus, o Terreiro do Trigo, a Alfândega e a Casa da Guiné, futura Casa da Índia. O seu exemplo foi seguido por grande parte das famílias nobres e dos mercadores ricos, que mudaram a sua residência para aquela zona da cidade, a fim de poderem usufruir do ambiente da corte, concentrando-se na Rua Direita Cata-que-faraz, para o lado ocidental do paço. É desta época a célebre Casa dos Bicos, que Brás de Albuquerque, filho de Afonso de Albuquerque, mandou construir junto da cerca mourisca. Nesta área passaram a conviver as casas fidalgas da Ribeira com a característica população marítima do bairro de Alfama, que vivia do, e para, o rio: pescadores, vendedeiras de peixe e garimpeiros do ouro do Tejo. De «bairro casquilho, aristocrático, alindado, culto, quando a Medina-Aschbouna poisava, enroscada tristemente no seu ninho de pedra no que depois se chamou “alcáçova” e hoje “o Castelo”», esta Alfama sarracena transformou-se num bairro de gente do mar e do rio, no dizer de Alexandre Herculano (O Monge de Cister).
Era nestas imediações, a oriente do Paço da Ribeira, junto à cerca mourisca e frente à Casa dos Bicos, embutida na mais nobre vizinhança, que estava instalada a praça da Ribeira, mais tarde denominada Velha, cuja representação podemos ver num magnífico painel de azulejos azuis e brancos do Museu da Cidade.
A localização não podia ser mais adequada. Nessa época, o rio chegava bem mais acima e os barcos carregados de peixe aportavam mesmo junto ao mercado. No Mar da Palha, que já foi apodado de «pequeno Mediterrâneo», o movimento de barcos era permanente e alucinante, sobretudo embarcações de pesca: pequenas e grandes, muletas, bateiros e buques, cada uma especializada no seu tipo de pesca, fainavam constantemente no estuário tagano e traziam grande parte do seu produto para a Ribeira.
Como é habitual nos mercados, a Ribeira estava dividida por áreas especializadas. A sua parte principal era constituída por alpendres, estruturas fixas de madeira apensas aos edifícios do terreiro, nomeadamente à Casa dos Bicos, onde se mercanciavam sal, caça e aves. O grosso do negócio girava em torno do peixe, vendido por mulheres, as regateiras, em pequenas bancadas de madeira sob a sombra de toldos quadrangulares, colocados na primeira linha, mesmo junto à rebentação do rio. Ainda no século XVI, o espanhol Villalba, em El Pelegrino Curioso y Grandezas de España, fala-nos de outras profissões ligada ao peixe, as escamadeiras - «mais de cinquenta mulheres [cinquenta e quatro, segundo Frei Nicolau] vivem em Lisboa pela seguinte indústria: têm umas dornas de água e umas facas bem afiadas; quem comprou pescado fresco dá a essas mulheres uns seitis, e elas, ali mesmo, em tanto tempo como rezar uma Ave-maria, logo o escamam, estripam e lavam». A estas somavam-se mais dezoito mulheres dedicadas à salga da sardinha.
Acabado de pescar, o peixe chegado nos barcos era de imediato distribuído por cestos, as teigas, e medido pelos rendeiros, homens idóneos que, ao serviço da cidade, faziam as contas à quantidade de peixe a ser taxado. Esses cestos eram seguidamente levados para as bancas das regateiras e vendidos ao público. Só então podiam ser amanhados pelas escamadeiras.
Tanta era a quantidade de peixe que se vendia nesta época que o respectivo imposto se tornava muito proveitoso para a coroa. Segundo Frei Nicolau de Oliveira «Rendem as almodravas, que são as pescarias do atum, catorze contos», uma bela maquia quando comparada, por exemplo, com a renda do Congo, Arda e Angola que «é de vinte e seis contos».
Da variedade de peixe à venda na capital dá também conta o padre Bluteau, um francês que viveu longo tempo entre nós, no seu Vocabulario Portuguez & Latino, de 1721: «Não há no mundo cidade mais regalada para dias de peixe. Algumas cem castas de peixe costumam vir à Ribeira de Lisboa.»
A destruição levada a cabo pelo terramoto de 1755 atingiu sobretudo a zona ribeirinha, não poupando a Ribeira Velha e S. Paulo, área onde se situara o paço de Santos. No novo traçado de Lisboa, o Marquês de Pombal incluiu a Ribeira Nova de S. Paulo, o mercado que substituiria a Ribeira Velha. O decreto que o mandou construir tem a data de 13 de Abril de 1771, dezasseis anos após o terramoto, o que significa que durante este período de tempo, a venda se fazia de forma ambulante.
Situada entre o Tejo e o quarteirão sul do Largo de S. Paulo, a nova Ribeira era constituída por 132 cabanas, num total de 256 lugares de venda, assentes sobre calçada ou lajedo, na maior parte destinadas ao peixe. Depressa se lhes juntaram barracas portáteis de venda de pão e de outros produtos.
No final do século XVIII, Link, um botânico alemão que fez extensas visitas de estudo ao nosso país, referiu que «o peixe [da Ribeira Nova] suplanta em qualidade, variedade e frescura qualquer outro mercado europeu.»
A Ribeira Nova pombalina veio a ser demolida em 1882, aquando da construção do novo mercado da 24 de Julho, assinado por Ressano Garcia e inaugurado a 1 de Janeiro desse mesmo ano, sobre o Aterro da Boa Vista.
Júlio de Castilho refere, citando o jornal O Ocidente desse dia: «O novo mercado era fechado e a sua serventia era facilitada por oito portões, três na fachada sul, igual número na fachada norte e um em cada uma das outras fachadas». Era dividido «em grande número de lugares que corriam ao longo das suas paredes. A larga coxia central dava entrada aos carros e cavalgaduras de transporte, os quais, feita a venda por grosso, saíam da praça.» Os lugares de venda de peixe eram o forte deste mercado, que possuía ainda boa iluminação e muita água.
Em 1846, o mercado do peixe «em grosso ou lota» passara já da Ribeira Nova para junto do rio. Em 1882, voltou a mudar, desta feita para o rés-do-chão deste novo edifício da 24 de Julho.
Porém, a de 1882 não é ainda a praça que vemos hoje, uma vez que esta ardeu onze anos volvidos, tendo sido substituída pelo edifício que hoje conhecemos e que levou vinte e oito anos a construir (1902-1930).