A MATRIZ PORTUGUESA NO ASSINATURA
O almoço que fiz ontem no Assinatura, pela mão do chef Vítor Areias, renovou-me a esperança na cozinha portuguesa contemporânea. O seu projecto é trabalhar com produtos portugueses, mas essa conversa, que costuma vir logo a seguir à da cozinha que aprendeu com a avó, é recorrente em todos os cozinheiros. Muitas vezes não passa de conversa por várias razões, financeiras, dificuldades de abastecimento, etc. Em duas palavras, começo já pelo fim: realmente importante na cozinha de Areias é que os pratos integram-se perfeitamente, na matriz do gosto português. A suportá-los estão técnicas muito bem executadas e escolhidas com todo o bom senso. A juntar a estes predicados, uma boa componente estética. O resultado é já muito bom e ainda promete mais.
O teste que faço sempre a mim mesma quando saio de um restaurante novo é perguntar-me se voltaria lá a comer no dia seguinte. Sim, voltava a comer já hoje no Assinatura e até era capaz de fazer a mesma refeição.
Vamos lá então começar do princípio. Vítor Areias, de 29 anos, está há 5 meses no Assinatura, vindo já de vários restaurantes e estágios, nomeadamente no Mugaritz. Tanto a equipa de sala como a de mesa são muito jovens.
O meu almoço constou dos seguintes pratos dos quais alguns apenas menciono e outros analiso ao de leve:
1) Couvert - gostei muito do patê de aves coberto por gelatina de vinho do porto, raspa de laranja e pólen de abelhas. Gostei da cremosidade e da forma como os sabores se notam individualmente. Manteiga de ovelha da serra da Estrela com orégãos. Azeite e pão.
As lulinhas no fumador
2) Primeira entrada: lulinhas couradas e fumadas com minúsculos couratos estaladiços, água de pimentos assados e folhinhas de beldroegas.
Vítor Areias gosta de dar uma ligeira fumagem a alguns alimentos. Este sabor está bem imbuído na nossa matriz de gosto nas carnes tem muita popularidade nos países nórdicos, onde nem sempre há condições para salgar ou secar e há abundância de madeiras. Durante a combustão, os açúcares das madeiras decompõem-se e produzem aromas florais, frutados, baunilha, cravinho, etc, em função das madeiras usadas e das temperaturas e tempos. No caso das lulinhas a fumagem é muito breve (1 a 2 minutos) e o sabor a caramelo é reforçado pelo caldo de pimentos assados. Como são minúsculas, as lulas são cozinhadas inteiras, ficando com uma cremosidade muito especial dos interiores.
3) Segunda entrada - o meu favorito da refeição, só igualado pela sobremesa. Sardinhas alimadas. Gosto muito de sabores simples e limpos como o desta entrada. Sardinhas marinadas em vinagre e azeite e cortadas em losangos. Em seu redor um conjunto de quatro diferentes variedades de tomate, todas da Quinta do Poial, sobre elas, um granizado feito com a água do tomate, pó de alho e tomates desidratados. A completar um piso de ervas aromáticas. Se pudesse indicar um prato moderno como exemplo da cozinha mediterrânica de que tanto se fala, poderia ser este. Saboroso e saudável. Mais uma vez com todos os gostos da nossa matriz e algumas técnicas interessantes. Excepcional. Em baixo, explico-lhe como se faz a água do tomate, cortesia do chef.
4) Um prato de lingueirão cozido em caldo de porco (cada vez mais presentes estas combinações terra mar, que às vezes fazem sentido outras não), ovo a baixa temperatura, espuma de alho e rebentos de coentros. À partida achei que o lingueirão e o ovo eram incompatíveis mas casaram muito bem.
5) Peixe-galo com molho de fígados de tamboril, curgetes, mexilhões e percebes. Muito intenso, o molho, deu mais vida ao peixe .
Gelado de poejo e quadradinhos de melancia
6) Pudim abade de priscos com bolas de sabão de vinho do Porto e calda de citrinos, ou um raio de luz para a nossa doçaria tradicional. É sempre pouco consensual falar de sobremesas com muito açúcar e gemas, como são as conventuais. Há quem defenda intransigentemente que devem ficar como estão e há quem advogue que, por exemplo, se lhes pode reduzir o açúcar, aligeirando-as. Neste último grupo está Maria de Lourdes Modesto que já me disse ser possível retirar cerca de 150 g a este pudim sem o desvirtuar. Não sei quanto açúcar lhe retirou ou o que lhe fez, mas Vítor Areias tornou este pudim numa sobremesa leve e agradável e, mais uma vez, carregada dos sabores da nossa matriz. Para ajudar nessa tarefa, juntou-lhe uma aromática calda de citrinos cuja ligeira acidez desagoniava o pudim. Como enfeite, uma rede de verdadeiras bolas de sabão, mas de porto.
No fim, ainda houve tempo de falar da Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lourdes Modesto
Os meus parabéns ao Vítor Areias e, para bem dele e da nossa cozinha, as maiores felicidades na sua carreira, que auguro com muito futuro. E com esta rima me vou, mas não sem lhes deixar aqui o modus faciendi da Água de Tomate, que sabe mais a tomate que o próprio tomate.
Água de Tomate
Escolhem-se tomates maduros, cortam-se em pedaços e colocam-se num tabuleiro perfurado forrado com um pano grande. Põe-se esse tabuleiro dentro de outro, para onde irá escorrer a água do tomate. Guarda-se o conjunto no frigorífico, enquanto escorre. Quando já não houver mais água, pode aproveitar-se o tomate para outra confecção.
Para quem não tenha o tabuleiro, pode embrulhar o tomate em pedaços numa gaze dobrada várias vezes e suspendê-la sobre uma tigela, no frigorífico.
Obrigada ao Mário Cerdeira pelas fotografias.Sempre excepcionais, apesar de tiradas com Canon Powershot.