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Conversas à Mesa

BENE TROVATO NOÉLIA

 Muxama de atum sobre gaspacho em creme

Camarão da costa algarvia com tomate e abacate

 

 

 

O professor que mais admirei em toda a minha vida foi o padre Manuel Antunes, que me deu História da Cultura Clássica. Sábio, um homem como deve ser, um professor extraordinário, dava aulas no maior anfiteatro da Faculdade de Letras, sempre a abarrotar de gente para o ouvir. Ele costumava citar uma frase a que sempre achei muito graça e que se pode aplicar muito bem à cozinha “Si non è vero è bene trovato”. Já cá voltamos.

O Algarve tem todas as cores à mesa. Enquanto lá para o Norte, os pratos se enchem dos castanhos e cinzentos do Outono/Inverno, com o centeio do pão, a castanha ou os cogumelos, cá para o Sul, temos o amarelo do milho, o vermelho do tomate,  do pimento e do marisco, os brilhos do peixe.

A semana passada almocei no restaurante Noélia e Jerónimo, em Cabanas de Tavira. Na cozinha está sempre a Noélia, trabalhadora incansável, presença bonita e simpática, a fazer felizes os comensais ao colocar nos pratos a cor e os sabores do Algarve e do Mediterrâneo. Na esplanada, avistei a ria e senti a brisa do mar. E comi muito bem.

 

 

 Atum braseado com arroz de amêndoa, limão e gengibre

 

 

Os produtos são bons e bem cozinhados. A cozinha é uma mistura de culinária algarvia com a criatividade da Noélia e muitos tons de Mediterrâneo. Noélia serve alguns pratos directamente da tradição, como por exemplo, a raia alhada. Encontrar quem faça bem os pratos tradicionais já é razão de sobra para ficar feliz. Mas confesso que o que mais me agradou e o que faz a diferença, aquilo que nos leva para o nível seguinte, é que a Noélia é capaz de pegar na matriz tradicional algarvia e, sem a desvirtuar, criar novos pratos muito saborosos, mais ao nosso gosto actual, eu diria, mais mediterrânicos. Mais mediterrânicos, por exemplo, porque têm mais legumes. Mais modernos porque se reduziram os tempos de confecção do peixe e do marisco. Tudo isto se pode fazer sem lhes alterar a tal matriz. Deixemos a raia alhada como está, só com a batatinha. É a tradição, deixem-na existir. Mas porque não pegar no conceito e transformá-lo num prato cheio de sol? E a Noélia tem toda a criatividade para o fazer.

 

 

 

Polvo frito com batata-doce

 Biqueirões fritos

 

 

 

 

 

 

 Raia alhada

 

 

 

 

 

Voltemos então ao padre Manuel Antunes e ao «Si non è vero, è bene trovato». Esta frase define os melhores pratos da Noélia, aqueles em que ela consegue sair da tradição sem trair a matriz. Como o arroz de amêndoa, limão e gengibre. Não há gengibre no Algarve? Pois não há umas centenas de anos nem tomate havia. A cataplana se calhar nem é de origem algarvia e não se sabe se terá mais de 60 ou 70 anos.

Força a vante Noélia.

 

(Inexplicavelmente, esqueci-me de fotografar um dos pratos que mais gostei, o arroz de limão com corvina e amêijos. Ou talvez se explique. Aliás explica-se. Os pratos que eu mais gosto, tendo a esquecer-me de fotografar porque queri logo prová-los... A sobremesa foi à base de figos: uma torta e um creme, que eu acho que ficam bem combinados.)

 

Noélia e Jerónimo

Av. Ria Formosa Edif Cabanas Mar (é a avenida marginal)

8800-591 Cabanas de Tavira

Tel. 281370649

 

Nota:

Irritantemente para quem quer reservar, o telefone está muitas vezes desligado. É difícil conseguir mesa. O meu conselho é que, agora no Verão, vá ao almoço. Se  quiser arriscar o jantar, apareça cedo.

 

 

 

 

NICARÁGUA OU A FORÇA DO TRIVIAL

Miami tem o bom da América "templado" pelo bom da América Latina. Aqui é preponderante a influência cubana, Havana fica a uns poucos 90 km. Vagas de cubanos têm chegado ao longo do tempo, sendo a mais conhecida a dos Marielitos, que nos anos 80 saíram de barco do porto de Mariel com o beneplácito de Castro, que os apelidou de "escória".

Na rua domina a mulher latina, exibindo orgulhosamente os generosos seios e bumbuns. Numa noite húmida com uma leve brisa tropical, um puro sabe pela vida.

É vulgar nos restaurantes ou nas lojas dirigirem-se-me em espanhol, ou até em português, porque, além de cubanos, Miami está repleta de outros latino-americanos, nomeadamente brasileiros. Esta a razão que, nos poucos dias que lá passei esta semana, me levou a dedicar grande parte do meu interesse em matéria de comidas a um destes países, a Nicarágua.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No meio de uma das maiores artérias da cidade, a Flagler Street (baptizada com o nome do homem que fundou a Standard Oil e do caminho de ferro que possibilitou o desenvolvimento de Miami) fui à procura da Little Nicaragua, mais especificamente dos seus restaurantes típicos, as fritangas.

O nome deriva do facto de os fritos serem muito comuns nestas casas, uma espécie de cantinas situadas habitualmente em pequenas plazas, os aglomerados de lojas ao ar livre que acompanham sempre os bairros habitacionais. As fritangas podem ser grandes ou pequenas, mas têm um balcão onde as várias comidas estão dispostas para escolha. Algumas estão mais vocacionadas para vender para fora, outras para comer no local,mas todas elas têm uma forte componente de convivialidade.

 

 

 Nacatamal

 

 

 

 

 

 

 

 

 Frituras diversas: batata doce, banana, enchidos

 

 

 

 

 

 

Para encurtar razões, digo-vos que fiquei fã depois de ter ido à Fritanga Amerrisque. Tive pena de não ter experimentado os pratos todos. Os meus olhos gulosos conduziram-me de imediato para a língua de vaca guisada, presos no molho espesso dos sucos da carne e do tomate e na textura semi fibrosa semi gelatinosa das fatias de tamanho irregular. Para acompanhar, mandioca cozida, embora o alimento base seja o milho, uma herança indígena. A doçura da mandioca abre os braços ao molho da língua e atenua-lhe a acidez do tomate. Depois não pude recusar uns lindíssimos embrulhinhos de folha de bananeira, os nacatamales, que escondem uma reconfortante mistura de carne de porco,  pimento, cebola, tomate, arroz, baaa, malagueta e passas sobre uma camada de masa de milho.  Leva horas a sua preparação.

 

 

 

 

 

 

 

 

É uma das combinações vencedoras, resultantes, em geral, da sobreposição ou da fusão de várias cozinhas, que se mantêm há muitas dezenas de anos inalteradas, ou com poucas alterações, precisamente porque reúnem produtos e gestos que passaram a pertencer aos mesmos ecossistemas. O resultado é uma falsa sensação de simplicidade que me (nos) atrai sem apelo nem agravo. Este tem sido o segredo do sucesso da cozinha do Peru e de outros países das Américas: a promoção dos melhores produtos confeccionados no apuro das maneiras tradicionais. Cada vez me convenço mais que este é o nosso caminho. Com a variedade de produtos e pratos que temos no nosso país, com a riqueza do nosso trivial, com ou sem os croquetes,  imaginem o que nós podemos fazer se resolvermos fazer bem feito, optando pelos bons produtos e pelas maneiras tradicionais de os preparar. 

 

 

 

 

Raspando o gelo
O gelo raspado no copo

 

 

 

 

 

 

 

 

A cobertura de dulce de leche 

 

 

A loja super colorida

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