Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Conversas à Mesa

CHHHHARROS FRITOS

FullSizeRender.jpg

 

O que procuramos quando nos sentamos à mesa? Coisas muito diferentes. Umas vezes nem nos sentamos, só queremos ver-nos livres da sensação de estômago vazio. Temos um enorme pavor desta sensação, que tão longe está da fome (como diziam os Gato Fedorento no sketch do avião, é tão só uma larica). Milhares de anos de fome verdadeira, daquela que leva à subnutrição e à morte, conduziram-nos a isto: ao mínimo sinal, precipitamo-nos para comer. (Um à-parte para quem está fazer dieta: esta sensação de larica, que nada tem a ver com fome, até pode ser agradável).

Nessa altura o que queremos são hidratos de carbono e açúcares de libertação rápida, umas bolachas, para matar essa larica.

Outras vezes, sentamo-nos à mesa para conviver. Um menu de degustação entre amigos, ou, atualmente, muitas vezes ao lado de pessoas que nunca vimos, serve simultaneamente de refeição e de teatro. É o dois em um. Cinco, seis ou sete pratos rendem umas boas três ou quatro horas, em função da velocidade do serviço. Acabamos por sair do restaurante depois da uma, altura ideal para ir para a noite, ou para a cama, conforme a onda.

Mas há alturas em que vamos a um restaurante do qual nunca ouvimos falar para comer, porque nos disseram que se come bem, mas até sem grandes expectativas, porque estas estão muito ligadas ao mediatismo. E saímos de lá com uma experiência quase mística, como se tivéssemos passado um mês num ashram indiano. Porquê? Porque comemos com a alma, seria a resposta mais bonita, a equivalente à dos cozinheiros que cozinham sempre com o coração e com paixão. Porém, penso que o importante foi termos comido hidratos de carbono e gordura muito bem conjugados, provenientes de produtos frescos e que vão ao encontro da nossa matriz cultural. Tudo o que entra no estômago, reflecte-se no cérebro. Certos alimentos são iguais a bem estar. Se lhes juntarmos um ambiente invulgar ou a sensação de exclusividade (se houver pouca gente no mundo que possa ter esta experiência), aí o prazer escala.

 

 

FullSizeRender 3.jpg

 

Isto tudo para lhes contar que estive num ashram em Ponta Delgada esta semana. Já há muito que não saía tão benzinho de uma mesa: almocei no Mané Cigano, um pequeníssimo restaurante propriedade dos dois irmãos Sardinha, que tudo fazem para nos ver felizes.

Quando entrei, o restaurante estava cheio, mas com gente prestes a sair. Encostei-me ao balcão e pedi o que estava à vista: pequenas iscas de fígado finamente cortadas com molho, estavam bem temperadas, sem excessos, e batatinhas rosadas, que depois percebi serem levemente picantes e de qualidade. Para beber, um copo de vinho de cheiro (também conhecido por morangueiro ou de uva americana), que um dia não são dias, e porque era servido de um enorme jarro de folha.

 

IMG_8562.JPG

FullSizeRender 4.jpg

 

IMG_8558.JPG

 

 

 

Tendo vagado assentos, abanquei em mesa corrida, com mais uns dez que já lá estavam. Eu já sabia ao que ia, tinha sido aconselhada: os famosos chhhhharros fritos. É assim que o meu ouvido de continental captou a palavra chicharros dita por um micaelense. E assim veio uma grande dose deles. Primeiramente envolvidos em farinha de milho branca de textura um pouco mais grossa do que a habitual de trigo e depois em fritura perfeita, faziam-se acompanhar por uma mistura de feijão encarnado, orelha de reco, bacon e pézinho do mesmo animal, tudo minusculamente cortado e muito homogéneo, sem contudo perder identidade. Os peixinhos, que aqui chamaríamos carapaus, teriam uns 10/12 cm de comprimento, ideais para comer à mão, mas deixando as espinhas. Num pratinho ao lado, vinham as acidezes sob forma de picle: cebolas de curtume, para cortar a fritura. Espero que este método muito típico dos Açores não desapareça, assassinado pelo imperialismo da grelha.

 

FullSizeRender 2.jpg

 

 

 

Depois, só mesmo para provar, veio a carne de vaca estufada (e veio de um bocadinho longe, porque a cozinha principal é numa casa fora do restaurante), num grande tacho. Estava cozinhada em lume brando até ganhar a textura de comer à colher e o molho engrossar e ganhar aquele tom castanho-avermelhado das folhas de outono, com uns olhinhos de gordura a chamarem a nossa atenção. Acompanhava com umas simples batatinhas. What else?

Para tirar a boca de lacaio, uma singela queijadinha de leite com um café.

E prontos.

 

O Mané Cigano tem, Deus seja louvado, uma ementa pequena, com pratos do dia todos os dias diferentes. O preço dos pratos ronda os 5 € 50, em doses generosas.

 

 

 

RESTAURANTES EMBAIXADA 2

foto equipa VS

 

 

 

 

Escrevi há pouco um post sobre os restaurantes embaixadas, em redor do caso de sucesso que é a Itália.

Hoje, venho a terreiro defender o importante papel dos restaurantes portugueses no estrangeiro para a divulgação da nossa gastronomia, tendo como pano de fundo um outro caso de sucesso: as tascas e kitandas do nosso Vítor Sobral.

Começo já dizendo que tenho profunda admiração por este chef como profissional, e grande estima pelo Vítor como pessoa. Quando escrevi O Grande Livro dos Chefs, foram duas as grandes ajudas que recebi na fase inicial, uma de José Quitério, outra de Vítor Sobral. Nunca as esquecerei.

Hoje chamo aqui o Vítor Sobral para o dar como exemplo dos novos restaurantes portugueses embaixada. Vítor Sobral foi sempre pioneiro. Um dos primeiros portugueses a abraçar a cozinha moderna (princípio da década de 90), foi, juntamente com Joaquim Figueiredo e Fausto Airoldi (e, no Porto, Miguel Castro e Silva), o rosto da nova cozinha portuguesa, introduzindo novos produtos, dando protagonismo a outros que há muito não tinham honra de mesa burguesa e, sobretudo, os ditames da Nouvelle Cuisine em termos de métodos de confeção. Estes levaram quase duas décadas a cá chegar. Muitos anos depois, Vítor Sobral foi chefe de fila da bistronomia portuguesa com a sua Tasca da Esquina.

Durante muitas dezenas de anos, os restaurantes portugueses eram dedicados unicamente a portugueses, com uma ementa profundamente fundamentalista. Comi em alguns deles no Canadá, em Nova Iorque, na África do Sul ou no Brasil. Todos iguais, neles reinando sempre o bacalhau. Todos eles tiveram o seu valor, reunindo em seu redor os elemento da portugalidade.

Hoje, tudo mudou. Os restaurantes portugueses são para estrangeiros também. Tal como os restaurantes italianos ou chineses se adaptaram ao gosto local, é inevitável que o mesmo se passe com a comida portuguesa.

Sabemos hoje que o principal elemento que define uma cozinha não são os pratos, mas sim os produtos. Não há pratos sacrossantos. Os restaurantes de Vítor Sobral divulgam os nossos produtos, misturando-os com os locais adaptando a nossa cozinha com finura ao gosto local. Não é por acaso que os seus restaurantes de Lisboa estão cheios de brasileiros. A provar esta preferência, estão os vários prémios que a tasca da Esquina/São Paulo tem recebido por parte dos meios de comunicação da área no Brasil. Recentemente foi a conhecida revista Veja, de São Paulo, a considerá-lo o melhor restaurante português no Brasil em 2015.

Parabéns ao Vítor por este seu papel de embaixador da nossa gastronomia, parabéns que estendo ao outros elementos do triunvirato que soube sabiamente formar: Hugo Nascimento e Luís Espadana. Espero que continuem a fazer esse trabalho importantíssimo para a nossa gastronomia, a saber, a sua divulgação no estrangeiro.

 

O CHEF SILVA

chef silva.jpg

Morreu o chef Silva. Homem de grande importância para cozinheiros e donas de casa, um feito raro na área da cozinha, tornou-se uma das figuras mais carismáticas da TV, cujos programas geraram a revista de cozinha mais lida de sempre em Portugal, a Tele-Culinária (1976). Foi cozinheiro do ano em 1975 e homem de certa modernidade lusa nos anos 80. Fez sonhar as donas de casa, até aí habituadas a cozinhar caldos, arrozes e açordas, com lagostas fingidas, ovos recheados com maionese e mousses de frutos exóticos. Foi o rosto da mudança na cozinha, mas teve papel fundamental na recuperação rigorosa de pratos da cozinha regional.

Foi enfim o primeiro cozinheiro a ser conhecido como chef fora das cozinhas (por exemplo, João Ribeiro respondia por mestre) e a usar com orgulha a sua jaleca nos programas televisivos, dando início à dignificação da profissão.

Que nunca seja esquecido.

 

Na foto em cima, o chef Silva faz uma pose à Bocuse, de quem foi praticamente contemporâneo, sendo apenas alguns anos mais novo.

 

 

IMG_8415.JPG

 

Para quem tenha curiosidade em conhcer a sua vida, aqui fica esta sugestão, um livro escrito por Amílcar Malhó 

OS RESTAURANTES EMBAIXADAS 1

 

 

tanka verapizza.jpg

 

Se a imagem da gastronomia de um país no exterior se forma dentro de portas através do gosto que o povo por ela tem e pela imagem que o turista transporta para fora após ter visitado e comido, não podemos esquecer a influência de um factor de muita relevância: o papel da restauração nacional fora de portas. Cada restaurante pode tornar-se um inestimável embaixador da gastronomia e ajudar a vender não apenas o destino turístico, mas também todos os produtos alimentares a ele associados.

 

IMG_8222.JPGUm dos casos de maior sucesso é o da comida italiana. Um país unido tão recentemente, conseguiu exportar a ideia de unidade gastronómica e invadir literalmente o mundo. Os soldados deste exército são as pizzas e as massas, mas atrás delas vêm todo um mundo de produtos marca Itália: o azeite, os queijos, os presuntos, os salames, o tomate, as trufas e, claro, o vinho. E, no fim de tudo, a marca Itália é a própria Itália.

 

Claro que há sempre perigos à espreita, nomeadamente a americanização, que pode ser um perigo, sim, mas também é a base da popularidade, tal como uma contrafacção da Hermès pode fazer vender mais Hermès. A esses perigos responde a Itália com certos mecanismo inteligentes, como a certificação dada pela Associação Pizza Verace Napolitana, que atesta a genuinidade das pizzas feitas em restaurantes de todo o mundo através do certificado Pizza Certificata Napoletana. A qualidade da pizza é certificada através da conformidade a normas dos ingredientes utilizados e das várias etapas da confecção, nomeadamente o modo de fazer da massa (tipo de levedura por exemplo, neste caso um fermento biológico natural) e o forno e a lenha usados.

Há três restaurantes certificados em Portugal: dois são do nepalês Tanka, o Forno d’Oro e o Come Prima, sendo o terceiro o Mercantina (com duas casas, uma em Alvalade, outra no Chiado).

O Forno d’Oro fez uma festa para comemorar a entrega do troféu, entregue pelo restaurador napolitano Antonio Pace, presidente da referida associação, e onde esteve presente o embaixador de Itália, a atestar a importância que os países devem dar aos restaurantes como embaixadas pelo mundo.

O meu próximo post «Restaurantes Embaixadas 2» será dedicado ao nosso embaixador Vítor Sobral a propósito de um prémio recebido recentemente no Brasil. Seria bom que nós povo e quem de direito nos apercebêssemos da importância que estas «embaixadas» têm na divulgação da gastronomia e dos produtos portugueses.

 

 

Pág. 1/2