AS TETINHAS DA RITINHA SALAVA E CONSIDERAÇÕES SOBRE O MANJAR-BRANCO
«Viúva de um proposto da Recebedoria», a Ritinha Salava é a personagem principal de um dos contos de Senalonga, uma colectânea de histórias passadas no virar do século na região de Seia, mas escritas nos anos 60, por Avelino Henriques da Costa Cunhal (1887-1966), que, nos anos 20, foi Governador Civil do distrito da Guarda e, durante o Estado Novo, exerceu a sua profissão de advogado em Lisboa, defendendo acusados de conspiração contra o Estado Novo. E foi pai de Álvaro Cunhal.
Vem este conto a propósito de uma sobremesa global já no século XII, o manjar-branco, de que há muito vos queria falar. Começo pelo conto, para vos abrir o apetite para a sobremesa em forma de tetinha, que ainda hoje se faz, sobretudo pelas Beiras.
Passa-se então a história que aqui nos interessa em redor da feitura do tal manjar-branco, sobre a qual a referida viúva assentava o seu ganha-pão. A descrição da sua confecção é dada ao mínimo pormenor, desde a escolha do arroz, à sua secagem e pisa, no almofariz da botica do Adriãozinho Mela. A história tem muita graça, e imagino a pilhéria que teria se proviesse da pena de Camilo Castelo Branco.
Ora certo dia houve festa em casa de família rica da terra, para celebrar a tomada de ordens de um dos filhos da família Carvalhosa, que não se poupou a esforços para a abrilhantar, convidando até com uma sua senhoria muito especial, um cónego vindo da cidade grande. A sobremesa, bandejas e bandejas de tetinhas de manjar branco, ficou a cargo da Ritinha
Tudo foi correndo bem, embora se sentisse a arrogância do dito cónego, que apenas com o macio correr de vinho e comidas se vai esbatendo. Chegados à sobremesa, o ambiente já menos tenso, eis que entram as bandejas das tetinhas.
«Os ditos brejeiros saíam de todos os lados: [...]
– É assim que um homem pega nas tetinhas da Ritinha Salava – demonstrava a babar-se o velho mensário. O senhor cónego mantinha-se impassível.
– Vossa Reverência pega-lhes assim com as pontas destes três dedos... – ensinou o Carvalhosa, fazendo com os dedos os trejeitos que as falas indicavam. [...]
– O senhor cónego hesitava, olhando desconfiado para a bandeja coberta de pomículos branco-aloirados com biquinhos petulantes. Eram apetitosas as tetinhas, mas os reclamos e as insinuações brejeira criavam no senhor cónego um problema de consciência.»
Por fim, animou-se e «Estendeu os seus três mimosos e rechonchudos dedos – o polegar, o fura-bolos e o pai-de-todos – e pinçou uma tetinha.», que levou à boca. «A tetinha roçou voluptuosamente pelos lábios do senhor cónego. E o senhor cónego, sentindo a carícia, susteve a respiração.» Foi então que se deu a tragédia: parou de mastigar, e olhos arregalados, cuspiu para o prato toda a tetinha, ao mesmo tempo que, com os mesmos três dedos, retirava um comprido cabelo de entre os dentes.
– Mas que grande porcaria! – exclamou o senhor cónego, fazendo careta de náusea.»
O jantar acabou em sensaboria, embora, com o tempo, a reputação da Ritinha se tenha salvado, permitindo-lhe continuar a abastacer Senalonga com as suas famosas tetinhas. Ela, de tanta vexação, é que nunca mais foi a mesma.
Aberto o apetite para o manjar branco, vejamos então um pouco da riquíssima história deste doce, que começando por ser exótico, existiu em todo o mundo conhecido.
Não é estranhar essa globalização alimentar muito anterior aos Descobrimentos, já que a Idade Média foi já uma época de uniformidade alimentar europeia a nível da classe dos poderosos, mais tarde acentuada pelo domínio da cozinha francesa e pela circulação de muitos cozinheiros franceses pelas várias cortes europeias.
Já a Infanta Dona Maria levou no seu caderno de receitas não uma, mas três confecções de manjar branco, um simples, um banhado (vai ao forno em em bolinhas) e um assado (no forno, mas com farinha e ovos): «Tomareis o peito de uma galinha preta [provavelmente, uma lusitana] e pô-lo-eis a cozer sem sal, senão na água, e há-de ser não muito cozida, para que se possam tirar as fêveras inteiras. (...) E para este peito é mister um arrátel de arroz (...) e uma canada de leite deitada no tacho, e sete onças de açúcar. E tomareis a galinha e dar-lhe-eis três machucadas num gral, e deitá-la-eis a farinha de arroz e (...) o sal com que se tempere, muito bem mexido. Então, pô-lo-eis no fogo e (...) a tempo batereis. Quando estiver cozido, deitar-lhe-eis o açúcar e, se não for muito doce, poder-lhe-eis lançar mais; e, como for cozido, tirai o tacho fora e enchei as escudelas e deitai-lhe açúcar pisado por cima.»
Feito de ingredientes brancos (amêndoas ou leite das mesmas, peito de galinha ou de capão, arroz ou farinha de arroz), ou talvez brandos (blanc ou bland), o blancmanger ou manjar branco já no século XII era um prato transversal a toda a Europa, e não só (existe na Turquia, com o nome de Tavuk gogsu, que significa «peito de frango» e, nas Arábias, com o nome de mahallabīyah ). É reconhecida a uniformidade da receita, cuja primeira versão escrita surgiu num manuscrito dinamarquês, como tradução de uma receita alemã proveniente de um manuscrito de Henrik Harpestraeng, de 1244, sendo este, por sua vez, já baseado num manuscrito latino ou em romanço do século XII.
Se hoje nos pode parecer estranha a conjugação dos ingredientes do manjar branco, uma análise mais cuidada revela-nos por um lado, um apontamento fortificante, a galinha, que nos remete para uma versão medicinal (já presente, por exemplo no Viandier), por outro, diversos ingredientes exóticos, que tornariam esta sobremesa, até por volta do século XIV, digna da alta cozinha.
À época, arroz e amêndoas, que hoje temos como banais, eram considerados ingredientes exóticos, por serem importados, raraos e caros. Por exemplo, o arroz, oriundo do Extremo Oriente, chegou à Península por via dos árabes, sendo no século XII um ingrediente de luxo. Para lhe reforçar essa vertente luxuosa, certas receitas adicionavam-lhe ainda dois outros ingredientes exóticos, a romã e o açafrão. Mais tarde, surgiu uma versão quaresmal do manjar branco, substituindo-se a ave por peixe magro.
Mais tarde, foi este doce recuperado nos conventos, tendo mudado provavelmente de forma de modo a dar pelo sugestivo nome de tetinhas de freira. Mas estas gastro-eróticas histórias conventuais já são sobejamente conhecidas.
A possibilidade de variar o manjar branco a partir da base dos quatro ingredientes, tornou-o extremamente versátil e possibilitou-lhe quase um milhar de anos de vida. Por exemlo, se lhe retirarmos a proteína e a substituirmos por uma gelatina, teremos a pannacotta. No Brasil, de onde chegou vindo de Portugal, ainda hoje é muito popular graças à adaptação aos ingredientes locais: coco e ameixas pretas secas.
Para terminar, e para lhes continuar a abrir o apetite, aqui ficam duas citações em que se refere o manjar-branco, uma de Chaucer, outra do grandíssimo Camilo.
Uma consideração para terminar: o caso do manjar branco chama-nos a atenção para a relevância de analisar bem o que é a tradição alimentar: por vezes considermamos tradicionais pratos com 70 ou 80 anos, quando afinal há alguns com quase mil e ainda hoje atuais, a que não damos qualquer importância. Precisamos de ter muito cuidado com esta coisa escorregadia que é a tradição.
TEXTOS
Do prólogo do The Canterbury Tales, Chaucer, na apresentação dos personagens (finais do século XIV):
«A COOK they hadde with hem for the nones,
To boille the chiknes with the mary-bones,
And poudre-marchant tart, and galingale.
Wel coude he knowe a draughte of London ale.
He coude roste, and sethe, and broille, and frye,
Maken mortreux, and wel bake a pye.
But greet harm was it, as it thoughte me,
That on his shine a mormal hadde he;
For blankmanger, that made he with the beste».
De A Corja, de Camilo Castelo Branco:
«Eusébio Macário considerava-se roubado na quantia de dez contos e na predestinação de camarista. Na ausência do pai, José Macário continuou a vestir-se num grande esmero de toilette e foi para Santa Clara, muito jubiloso, com atitudes modestas de anjo redentor da mártir. Ela vestira-se de gala para arreliar as freiras e as farraponas das seculares, escandalizadas da sua alegria; pusera muito carmim e despeitorara-se como se a grade, com um aroma de centenares de extintas santas, fosse uma sucursal do bouquet do Carvalhido ou do pavilhão da Flora. A preta, rutilante de risos e dentes muito alvos, entrou com a bandeja dos licores e manjar branco. Cálices opalinos dos cremes bebidos de meias e manjares encetados pelos dentes da Pascoela passavam-se na roda. Ela, balouçando-se na velha cadeira de assento de palhinha rota, esfiampada, punha o pé na rexa da grade, calçado de cetim preto com meia de seda cor de pérola e fitas cruzadas sobre o tornozelo descoberto. O Fístula punha-lhe beijos ideais na macieza da meia, e ela, sofraldando a barra do roupão de seda até à liga,mostrava, dizia morbidamente que tinha emagrecido muito no convento. E ele, a sacudir a juba leonina em crispações sensuais, pedia-lhe que escondesse a perna, que o não abrasasse, que o matava».