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Conversas à Mesa

JANTAR DE CAÇA NO SOCIEDADE

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Gosto de caça, sobretudo de pena. Gosto porque é um produto sazonal, a desfrutar na sua época. Gosto dos sabores mais intensos da carne, mas que, no entanto, conservam toda a finura. Gosto, porque é o resultado da actividade cinegética.

Hoje dificilmente se come ave de pena selvagem. Se as conseguirmos apanhar da semi-selvagem, criada extensivamente, já é uma sorte. A mortificação só faz sentido em aves selvagens, de textura mais dura, a fim de lhes amaciar as carnes e acentuar o sabor. Já Alfredo de Morais, nas suas crónicas de O Cronista, nos anos 50, referia que ultrapassar os 3 a 5 dias de faisandage, a ponto de o corpo da ave se separar da cabeça, seria snobismo, uma vez que nem o sabor do bicho nem a sua textura se tornariam melhores.

Das aves de pena, sempre preferimos a galinhola, mas essa hoje dificilmente aparece.

Quando vi o anúncio de um jantar de caça no restaurante Sociedade, preparado pelo Henrique Moura e por João Magro, o chef residente, apressei-me a reservar, mesmo sem conhecer ementa. Não só pela caça, mas também para ter o prazer de reecontrar a cozinha de Henrique Mouro, de quem recordo com saudade os tempos de sous chef do Aimé Barroyer, no Pestana Palácio, os do Clube de Vila Franca de Xira e dos primeiros tempos do Assinatura.

Do que mais gostei do jantar, cuja ementa aqui reproduzo em foto, foi a combinação com os outros produtos da época, sobretudo raízes, tubérculos e leguminosas. Começamos bem com a canjinha de tordos, mas o meu prato preferido foi a perdiz de escabeche com maçã e funcho marinado. Notei a falta da acidez das verduras (agrião, nabiças, grelos). A sela de lebre estava muito bem temperada e de sabor intenso, mas esperava um pouco mais de espevito das groselhas do molho. Lindas e outonais, as cores de todos os pratos, numa paleta de castanhos e amarelos.

Duas palavras para o pão da mesa: muito bom.

O serviço do Sociedade, onde habitualmente se come sempre muito bem, é muito simpatico. O ritmo foi impecável, apesar de as mesas terem comido em tempos completamente diferentes.

Henrique, esperamos poder frequentar em breve um restaurante sob a sua chefia.

 

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Canja de tordo folhada com ovinho e outras coisas

 

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Perdiz de escabeche com maçã e funcho marinado

 

 

 

 


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Arroz de pombo bravo, abóbora assada e alecrim

 

 

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Sela de lebre com groselhas, feijão e cheróvias

 

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Peras em vinho tinto e leite-creme queimado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ENTREVISTA A FORTUNATO DA CÂMARA

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Hoje começa no Conversas à Mesa um novo tipo de post: a entrevista. A primeira é com o critico gastronómico do Expresso, Fortunato da Câmara, a propósito do lançamento do seu último livro Manual para se Tornar um Verdadeiro Gourmet (Editora Manuscrito). Os temas focados são alguns dos 25 apresentados no livro. Fortunato da Câmara tem a pesada tarefa de suceder no Expresso ao homem que mais sabe de história da alimentação em Portugal e cuja aura de rigor na crítica gastronómica é avassaladora.

 

 

 

FM - O Fortunato da Câmara dá entrevistas na televisão, apresenta livros, ou seja, tem uma imagem pública. Então porquê colocar uma foto com a sua cara desfocada na badana do livro?

FC - Calhou. O fotógrafo tirou-a já assim desfocada e eu achei graça e escolhia-a. Talvez esteja um pouco desajustada mas não foi intencional. O que não quer dizer que me reconheçam nos restaurantes. Há formas de não ser reconhecido.

Eu tenho alguns pequenos truques para evitar que me possam reconhecer.

 

FM - Disfarça-se como a Ruth Reichl?

Não quero dizer mais, mas há maneiras de não ser reconhecido (risos). Já aconteceu o fotógrafo do jornal ir aos restaurantes tirar a foto da praxe e dizerem-lhe que o crítico ainda não tinha estado lá .

Tenho 90 % de certeza de que nunca fui reconhecido. Às vezes pensam que eu também sou da área da restauração por causa de certas perguntas que se fazem. Procuro que seja sempre uma senhora a fazer as perguntas acerca dos pratos, é mais natural as mulheres serem curiosas acerca dos cozinhados.

 

 

 

 

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FM - O que é o gourmet a quem se destina o seu último livro Manual para se Tornar um Verdadeiro Gourmet?

 

FC – A definição de gourmet nasceu para caracterizar pessoas interessadas em saber comer reconhecer bons produtos. Este termo está hoje muito vulgarizado na sua associação com o consumo de produtos caros, mas não é nesse sentido que se define atualmente um gourmet. O culto dos produtos caros, que muitas vezes nem têm qualidade é um assunto que diz respeito à indústria do luxo. O negócio desta indústria é vender produtos caros e vender o sonho. Porém, o gourmet não se define como sendo aquele que consome produtos caros ou de luxo, mas sim como aquele que persegue a perfeição de determinado produto, que até ode ser barato. Por exemplo, saber comer sardinhas. É curioso «perseguir» a sardinha ao longo de todo o ano, separando a que vem de norte e de sul de Peniche. Nesta altura do ano, a sardinha ainda está melhor do que em Junho, altura em que muitas vezes não existe por cá em abundância. Nas Festas de Lisboa, vêm parar ao nosso prato sardinhas importadas da Holanda. Ser gourmet é ter curiosidade em ver todas essas diferenças e ter o gosto de conseguir comer as melhores sardinhas, reconhecendo que são as melhores. Não tem nada a ver com dinheiro.

 

 

FM – Então o gourmet precisa de ter uma atitude ativa de procura do saber. É isso que faz a diferença à mesa?

 

FC - Sim. O gourmet tem uma predisposição mental para analisar o que está a comer. Não é o facto de ter acesso aos sítios mais caros do mundo que faz de alguém um gourmet. É uma atitude global, gastronómica perante o ato de comer. O gourmet não come apenas para satisfazer uma necessidade fisiológica ou por afirmação social. Um dos requisitos para ser um gourmet é ter uma boa memória, sobretudo de palato, para poder comparar.

 

FM - E pode ser-se gourmet com poucas posses?

 

FC - Quanto mais se vai avançando no conhecimento, mais caro fica. É como jogar golfe. Se frequentarmos sempre o mesmo campo e tivermos o mesmo set de tacos, o golfe torna-se acessível, mas quando queremos variar os campos e melhorar o equipamento, aí torna-se muito caro.

 

FM - O que pensa dos produtos portugueses artesanais?

 

FC -Em relação aos frescos, a nossa ignorância ainda é muito grande. São muitas as variedades de fruta, legumes e leguminosas que já se perderam ou se estão a perder. Há aqui um paradoxo: apesar de toda a notoriedade da cozinha actual sabemos pouco das variedades das castanhas ou das maçãs. Consumimos castanhas sem sequer nos apercebermos de que elas têm variedades e limitamo-nos a meia dúzia de variedades de maçã, sempre as mesmas. Deveríamos alargar o nosso repertório. Em relação aos produtos artesanais temos também muitas imitações. Por exemplo, temos excelentes queijos, apenas uma dúzia deles, mas muito bons. Já nos enchidos temos uma variedade maravilhosa. Mas fazemos tudo ao contrario, partimos de bons produtos, produtos de excelente qualidade, mas não lhes colocamos mais-valia. Temos fantásticos queijos, porém não os curamos ou afinamos. Os produtores não têm margem para investir em armazenar queijos e não há “afinadores”.

 

FM – Talvez porque não tenhamos consumidores finais que apreciem a diferença e estejam dispostos a pagar a diferença de preço?

 

FC - O que é muito estranho com tanto mediatismo que hoje tem a gastronomia. Realmente, as pessoas nem sempre reconhecem a diferença do que é bom. Não procuram o melhor.

 

FM – O que pensa das feiras e desta febre dos food courts nos mercados?

FC - A gastronomia tornou-se um balão de oxigénio do comércio. De repente, só há programas de gastronomia, feiras temáticas de produtos. Está toda a gente a inventar tudo. Alguém pode chamar a isso criatividade, mas muitas vezes é uma criação sem nexo. Trata-se apenas de mostrar as habilidades que se podem fazer com um certo produto. A feira do caracol é a montra do bicho transformado de todas as maneiras e feitios. Antigamente, as terras disputavam-se para apresentar nas suas festas o melhor cantor pimba; hoje, querem é ver qual é a festa que apresenta mais produtos, quanto mais delirantes melhor. Coisas que frequentemente não têm nenhuma tradição, são invenções sem nexo que surgem só para aparecer nos programas da tarde da televisão.

No Norte, ainda há boas feiras com pequenos produtores, mas, em termos gerais, os mercados estão massificados. Naqueles que se transformaram em food courts não há uma grande ligação entre os restaurantes e as bancas, que são sempre em numero reduzido. Em Barcelona, os vendedores do la Boqueria queixam-se de que o Mercado se transformou num verdadeiro circo. Não vendem nada, e o Mercado está sempre pejado de turistas que só vão para tirar fotografias.

 

Os mercados urbanos estão massificados e já não vendem produtos dos pequenos produtores, aqueles que dependem da época e que têm produções mínimas.

Mas há excepções, por exemplo a feira da Estela, na Póvoa do Varzim é de uma enorme riqueza. Vendem-se aves de capoeira, batata dos pequenos produtores. As pessoas vão ali comprar mais barato e saem com o melhor.

 

 

 

FM – Escreveu este ano um livro sobre cozinha mediterrânica Viver Portugal com o Mediterrâneo à Mesa, lançado pelos CTT. Até que ponto a alimentação dos portugueses, em casa ou no restaurante, é mediterrânica?

 

FC - No Alentejo, a geração mais velha, com mais de 40, ainda orienta a alimentação pelos ciclos da natureza. Os migrantes, os que vieram do para as grandes cidades, fazem questão em ir à terra comer os produtos da época, ou até recebê-los vindos da terra. Hoje é uma dieta que já inclui mais carne, não é tão hipocalórica, porque há mais dinheiro. O Algarve claro, também tem este tipo de dieta. Mas a verdadeira fronteira é a serra da Arrábida. Como demonstrou Orlando Ribeiro, é aqui que tudo muda, começando pelo clima e pela vegetação...

A cozinha do Norte não tem nada de mediterrânico.

Nos restaurantes mais simples, para as refeições semanais em dia de trabalho, é tudo à base da batata frita e do arroz. A comida destina-se quase só a alimentar. 90% da restauração de Lisboa só tem este objectivo, porque continua a ser muito barato comer fora. Há dez anos atrás estava tudo pior. Hoje, já se começa a ver em alguns desses restaurantes um regresso à cozinha tradicional. Vejo muitos pratos de mão de vaca, por exemplo, muita da chamada “comida de conforto”. Como hoje a concorrência da lancheira é grande, os restaurantes têm de oferecer qualquer coisa diferente.

Nos nossos restaurantes com alguma cozinha ainda se cozinha de verdade, a comida não é de catering, como em Espanha e em França onde há restaurantes com estrela Michelin de catering.

 

 

FM - Como decorre uma refeição típica sua de trabalho para a revista do Expresso? Há muita tensão ou consegue relaxar e recriar o ambiente na pele do consumidor?

 

FC - Ao princípio, quando comecei em 2006, tudo era mais tenso. Hoje, consigo descontrair. Habitualmente vou duas vezes ao mesmo restaurante, em geral acompanhado com outras pessoas, para alargar o leque dos pratos. Mas há sempre um caderno de procedimentos, um guião. Toda a gente sabe que é preciso seguir certos preceitos. Preparo previamente a refeição, consulto a ementa na net, escolho alguns pratos e todos levam as suas instruções. Porém, quando estamos à mesa, parece uma simples refeição de amigos.

 

 

FM - Para terminar, um tema quente do livro, os blogs e os bloggers. Na sua opinião, os bloggers deviam ser mais sinceros com os leitores .

 

 

Escrevi sobre este tema porque acho que os leitores interessados nestes temas devem estar informados. Os blogs são hoje muito importantes na divulgação da gastronomia. Há blogs fantásticos que fornecem a custo zero muita informação difícil de encontrar. Os blogs têm a vantagem de exibir as publicações rapidamente e a quantidade de vezes que o blogger pretender. Não precisam de submeter o texto a nenhum corpo editorial. Só dependem deles mesmos. Essa facilidade faz com que, neste momento, as agências de comunicação gostem mais de convidar bloggers que jornalistas.

A questão é as pessoas perceberem que há vários tipos de blogs. Alguns tornaram-se um negócio escondido. E aí é que começa o problema. Há vários tipos de blogs e vários tipos de interesses por trás.

O blog surgiu como uma espécie de diário, para o próprio ou para amigos, e acabou por se transformar numa ferramenta poderosa. Mesmo em Portugal, há blogs com centenas de milhares de seguidores e com muito poder.

Não deveria era haver pudor de o blogger dizer quando, por exemplo, escreve depois de ter sido convidado para fazer uma refeição num restaurante. Há que não dar uma ideia errada ao leitor.

 

 

Nos jornais, os convites também existem, surgiram com os artigos de viagem, porque não havia verbas para pagar as reportagens dos jornalistas. Foi a primeira área dos jornais a ser subjugada completamente aos convites.

Depois, quando as coisas foram piorando na imprensa, passou também para o mundo da gastronomia. Nos artigos de viagens há sempre que ler a letra pequena de agradecimento no fim, que indica que o texto foi feito graças a um convite .

 

Dou como conselho às pessoas que tentem ler nas entrelinhas de cada blog . Muitas dos bloggers convidados para irem a certos locais não teriam acesso a eles se não fossem convidados, e isso é positivo. Depois, acabam por vender um sonho às pessoas que os lêem, que na sua grande maioria também nunca terão possibilidade de frequentar esses locais.

 

Hoje a divulgação e a comunicação vêm os blogs pelos contadores de números. Quanto mais gente os seguir mais eles são convidados. Bloggers de blogs de receitas com muitos seguidores transformam-se em críticos gastronómicos de restaurantes de luxo. Vende-se o sonho. A marca vai sendo falado durante muito tempo.

Qualquer cidadão tem direito a estar protegida da publicidade, logo, não pode haver publicidade encapotada . A internet está hoje a ser regulamentada em relação à publicidade. Tem que haver balizas quando alguém tem poder para dizer alguma coisa a milhares de pessoas ao mesmo tempo.

 

 

 

 

 

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