O ABADE DO PUDIM
«A receita é fácil de se fazer, o difícil é acertar»
Como dizia o Abade de Priscos
Reuniram-se num livro sobre o Abade de Priscos, Mário Vilhena da Cunha, neto de uma sobrinha do abade e detentor da documentação deste, e Fortunato da Câmara, crítico gastronómico do Expresso.
O livro é muito interessante e detalhado, trazendo-nos muitas novidades sobre o personagem quase mítico do Abade, de seu nome Manuel Joaquim Machado Rebelo. Numa escrita agradável e rigorosa desfilam detalhes da sua vida, as ementas de vários banquetes que cozinhou e sobretudo a sua receita privada do célebre pudim. É sem dúvida um dos livros mais emocionantes dos últimos anos no nosso panorama gastronómico.
Li o livro de relance e hoje deixo-vos apenas uns primeiros comentários.
Em relação às ementas dos banquetes são as expectáveis: cozinha afrancesada sem grandes luxos, no geral. As refeições estão habitualmente ligadas à presença de altos dignitários da Igreja ou da nobreza e ainda festas de casamento. Em todas elas o abade cozinhava por gosto, isto é, sem pagamento, apenas pelo prazer de obsequiar amigos e superiores hierárquicos. Infelizmente, das receitas dos banquetes não reza a história, mas provavelmente serão retiradas de livros franceses, com a mão do abade. Receitas há-as sim tipicamente portuguesas, as de casa, recolhidas em diversos cadernos e escritas à mão pelo abade. Numa primeira aproximação pareceram-me sempre vagas, como habitual na época, e sem acrescentarem nada de novo: coelho à caçadora, queques, várias lampreias e pudins. Aliás é o próprio abade quem desvaloriza a instituição das receitas. Instado para publicar um livro de receitas, «explicou a recusa com o facto de não poder dar as suas mãos nem o paladar da sua língua» (p. 218). Por várias vezes, o abade fez o célebre pudim em simultâneo com outros a quem facilitou a receita a fim de comparar os resultados, que eram inevitavelmente diferentes.
Ponto alto do livro, é a receita do chamado «pudim de Priscos», manuscrito por uma das sobrinhas do abade. Pela ímpar mão do abade, há um manuscrito anterior de um «podim d’ovos», que talvez tenha servido de ponto de partida. De facto, o chamado Pudim Abade de Priscos é um pudim de ovos, superiormente aveludado pelo toucinho.
O número de gemas do podim d´ovos é inferior em duas à da receita posterior, e o peso de açúcar em 40g.
Consta dos seguintes ingredientes:
18 ovos
500 g de açúcar
um cálice de vinho fino
casca de 1 limão
um bocadinho de toucinho
um pau de canela
um bocadinho de manteiga
Chegámos agora ao ponto mais emocionante do livro. À descrição de «A receita privada do Abade para o seu esplendoroso pudim de Priscos», o que o abade fazia em sua casa. As gemas eram em número de 18 e o pudim surgia rodeado de um anel de gelatina de sabor neutro à base de vinho branco (adivinha-se que fosse do verde). Esta gelatina servia como uma espécie de limpa palato entre colheradas da ardente doçura do pudim. Hoje em dia, os cozinheiros e pasteleiros acham a necessidade de contrapor sabores ácidos a esta doçura, até porque estão na moda as acidezes à sobremesa. Na minha opinião, os doces conventuais e outros não conventuais mas com muitos ovos e açúcar não precisam de qualquer compensação. Que não gosta destas intensidades que os não coma. Deverão ser consumidos em pequenas quantidades, mas tal qual foram criados. A única coisa que os deve acompanhar são copos de água fria, que servem de limpa-palato entre as colheradas. Com este livro, aprendi a solução de génio do abade: o limpa-palatos de gelatina, cuja receita vai variando, sendo a base a gelatina, a água, o vinho branco, o sumo de limão e de tangerina, o sal e as claras de ovos. Ainda não experimentei, mas vou fazer a receita completa e depois vos darei parte.
Aqui ficam os meus parabéns aos autores. O livro será certamente um argumento de peso para a crescente popularidade do pudim e base de trabalho para a respectiva confraria.