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Conversas à Mesa

PÂO E PEIXE NO DIA DO TURISMO I

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Dia 27 de Setembro, juntei-me aos Chefs à Pesca e a Gesticook para comemorarmos o Dia Mundial do Turismo. O projecto era celebrar este dia para não só mostrarmos a nossa cultura como também recebermos outras. Pensámos que uma das melhores coisas que temos a oferecer a quem nos visita é o peixe, e resolvemos combiná-lo com o pão, tão presente na nossa dieta e que precisa tanto de ser melhorado. Convidámos o Yasser, o padeiro do Mezze, o restaurante sírio nascido de um crowdfunding e ligado ao projecto Pão a Pão, e o Diogo Amorim, um jovem padeiro e proprietário da padaria Gleba.

 

Hoje vou falar-vos apenas do pão. No próximo post, falo-vos da refeição que fizemos nesse dia.

No Ocidente, não há alimento tão importante quanto o pão, que marcou a diferença entre viver e morrer e mudou muitas vezes o curso da história. Ele, ou melhor a falta dele, estiveram na base de inúmeras revoluções. Uma delas teve lugar na França feudal e arruinada dos fins do século XIV, contra as pilhagens sucessivas dos mercenários contratados para lutar contra os ingleses. A senha dos camponeses era «Le pain se lève», o pão revolta-se.

Algum tempo depois, Lutero e Calvino disputaram-se acerca da transubstanciação, a transformação do pão no corpo de Jesus Cristo («Este é o meu corpo, tomai e comei»), enquanto os camponeses morriam de fome sem qualquer possibilidade de transformação do pão no seu corpo.

 

 

 

 

 

 

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Na nossa cozinha não houve qualquer disputa apesar de termos dois padeiros. O Yasser fez Maneesh, muito popular nos países do Levante, mas com algumas diferenças, variando de uma região para a outra em altura, na quantidade de fermento, no tempo de repouso e no modo de cozedura. O do Yasser é muito fino, quase uma espécie de crepe, que não vai ao forno mas coze sobre uma placa metálica redonda. O Yasser faz este e outros pães no Mezze, situado no mercado de Arroios. Os pães foram coberto com za’atar, uma pasta típica feita com tomilho, orégãos e sementes de sésamo.

No nosso país, existem alguns pães achatados que não cozem no forno, apesar de poucos serem conhecidos. Alguns são levedados, como o bolo lêvedo dos Açores e o bolo do caco da Madeira, sendo o último tradicionalmente cozido num caco de telha que lhe dá o nome. Outros são ázimos (não levam fermento), como o bolo ázimo do porto Santo, que coze numa frigideira de barro, e o bolo de sertã de S. Miguel, à base de milho. Alguns cozem sobre uma telha de canudo, outros na frigideira, outros ainda numa chapa. Faziam-se antigamente estes pães no intervalo das fornadas, que tinham dia fixo. Se entretanto se acabava o pão, as mulheres faziam uns pães destes na chapa, porque o forno não estava livre ou não estava na altura de usar. Para poderem cozer na chapa, os pães não podiam ser muito altos, logo, ainda que levassem algum fermento, não podiam levedar muito, para se manterem baixos.

Mas tivemos a sorte de ter não um, não dois, mas três diferentes pães feitos pelo Diogo Amorim. Este jovem resolveu arriscar e abrir uma padaria, A Gleba, onde o processo de fazer bom obedece a todos os requisitos necessários para que ele seja bom. em primeiro lugar as farinhas são artesanais e naturais. Ele usa trigo barbela, uma variedade muito apreciada no norte por fornecer muita palha para os animais, e centeio da Terra Fria transmontana e milho branco. Com estes três cereais Diogo Amorim fez três pães magníficos, que também podem ser comprados na sua padaria. Os cereais são todas moídos por ele numa mó de pedra. O femento é natural e não químico, uma massa madre ou isco que Diogo trata com carinho.

 

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O Diogo fez ainda a massa de pão para os robalos no pão do Paulo Matias. E ficou óptima para se comer como acompanhamento, molhada em azeite ou nos sucos do tomate que o acompanhava.

 

 

 

 

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Para entrada tivemos também uma bola de sardinha da autoria do Luís Barradas, que teve a ideia de as arranjar e de as marinar antes de as colcoar no meio da massa. As sardinhas ficaram com um sabor fantástico. O Luís é o consultor para o projecto do restaurante Mezze.

 

 

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A acompanhar o pão, queijos da serra do Sicó (2 queijos amanteigados, um de cabra e outro de ovelha, o queijinho rolha de mistura, de mistura com pimentão e o atabafado de cabra) e queijos da Beira Baixa ( o oloroso e delicioso queimoso, cabra curado, ovelha curado, cabra e ovelha curado, cabra, ovelha e vaca curado. 

Padeiros como o Diogo fazem-nos muita falta, para nos voltar a ensinar o que é o pão. Alguns de nós já esqueceram e outros nunca chegaram a saber.

 

Amanhã falamos do resto do almoço.

 

 

Padaria Gleba

Rua Prior Crato, nº 14, 16 e 18

Lisboa, 1350-352 Lisboa

Tel: 966 064 697

gleba-nossa.pt

 

Mezze

  1. Ângela Pinto 22/23

1900-067 Lisboa

 

 

 

 

 

A LUSOFONIA À MESA

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Confesso que estava distraída e não me apercebi do fantástico trabalho que o Vasco Lello estava a fazer no café Colonial, isto já lá vai um ano, e apesar de ser sua fã. Ontem, finalmente, arrepiei caminho e visitei o seu restaurante, o Café Colonial. Pertence ao hotel Memmo, um pequeno cinco estrelas encravado na ponta da colina que cai sobre Lisboa nas traseiras da D. Pedro V, recentemente edificado num local onde parecia impossível alguém poder construir.

O restaurante tem óptimo ambiente, um agradável bar mixologista, e estava cheio de portugueses, complementados por 3 ou 4 mesas de clientes estrangeiros do hotel. Decoração interessante, cadeiras confortáveis, mesas de lindíssimos tampos em pedra, infelizmente sem qualquer panejamento. Carta não muito longa, mas abrangente. A para refeições informais.

Para o jantar, embarquei com o Vasco Lello numa viagem a quase todos os cantos do mundo por onde nós portugueses andámos. Foi um verdadeiro roteiro de lusofonia, que se deveria fazer mais à mesa e menos por acordos ortográficos. Ao longo da refeição, levou-me a fazer uma viagem de muitas emoções, que se foram acumulando até que, quando provei o calulu de peixe seco da minha terra, dei por mim com uma lágrima a querer escorrer cara abaixo.

A cozinha de Vasco Lello é complexa e espiritual. Complexa porque ele consegue colocar num prato um ror de produtos sem o complicar, sendo mestre no equilíbrio do seu resultado final, o que não é tarefa nada fácil. Espiritual, porque consegue chegar à essência das diversas origens apresentadas, sempre com o maior respeito pelas suas origens. Atualmente, habituados que estamos à (falsa) simplicidade dos três ingredientes no prato, não é tarefa fácil alguém conseguir conquistar-nos com um prato cheio de sabores, mas todos eles em paz e harmonia, ainda que possam ser contrastantes.

Porém, o que mais me agradou na cozinha do Vasco Lello foi a viagem ao tempo das nossas viagens, em que fizemos um constante leve e traz, de uma costa para a outra, de um continente para o outro. Fomos nós os primeiros a trazer o chocolate para África, o café para o Brasil e as malaguetas para a Índia.

Infelizmente, os nossos cozinheiros não se inspiram nestas nossas matrizes do passado (excepção seja feita a Bruno Rocha, mas de forma mais pontual), preferindo por vezes ir buscar raízes a origens que cultural e gastronomicamente nada nos dizem.

A partida para a refeição foi muito lisboeta, com laivos árabes nas frituras: uns croquetes de camarão e outros de rabo de boi, e umas ostras, tão típicas de Lisboa que se abriam nos braseiros a cada esquina. Vinham com notas orientais da soja, um casamento que não me agradou muito. Mas adorei o seu companheiro, um reconfortante caldo de ostra, que bebi até à última gota.

 

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Em seguida, as duas jóias da coroa. O calulu de Angola e o caril de garoupa da Índia, mas a piscar o olho à Tailândia.

O calulu é um prato que se fazia com algumas diferenças em todas as nossas colónias. O nome provém do tupi caruru, que significa quiabo. Trazido de África para o Brasil ali voltou depois de enriquecido com a americana mandioca. O calulu do Vasco era estilizado: o peixe usado era a garoupa fresca, mas tinha a presença de vários pedaços de garoupa seca à moda africana, que enchiam o molho com o sabor do calulu angolano. O funji de fuba de mandioca e de milho angolanizava o prato. Estava verdadeiramente de vir às lágrimas, já que estas realmente assomaram aos meus olhos pela saudade que a alma deste calulu me trouxe. (foto do início)

 

 

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A garoupa seca que é incoporada no molho.

 

 

A viagem continuou através de um magnífico caril, uma mistura criada no restaurante e que lembra um pouco o caril verde tailandês. A proteína era mais uma vez a garoupa e a carnuda gamba acompanhadas por mini quiabos, coco e paparis.

 

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Dois pratos que não esquecerei.

 

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Saborosíssimo, o pato com molho hoisin, legumes e ceveda perlada, a representar muito bem a carne.

 

 

 

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A terminar, um gelado de chá verde e uma reconfortante queijada de mandioca, com aquela textura tão característica dos bolos de fubá brasileiros, a lembrar que a origem desta raiz é americana.

Uma viagem ao mundo da lusofonia em 80 minutos que vale a pena fazer. Para nós portugueses, uma forma de recordarmos que as nossas raízes estão espalhadas por todo o mundo e de darmos as boas vindas às dos nossos companheiros de viagem. Para os estrangeiros, uma montra dos produtos que poderiam fazer parte e enriquecer a nossa cozinha tradicional, mas dos quais parecemos arredados.Parabéns ao Vasco Lello por ter a visão de os recuperar e integrar na nossa cozinha.

Duas palavras finais. A primeira para a grande qualidade do serviço, discreto mas sempre presente, na medida certa e com a informação útil sem hesitações. A segunda, para a beleza e boa escolha da loiça, adequada esteticamente mas também funcionalmente.

 

 

Café Colonial

Tel: +351 961 844 248

Rua D. Pedro V, 56 J

1250-094 Lisboa

 

 

 

 

O NOSSO LIXO

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Até aos anos 60, não havia nome para caixote do lixo na região do Barroso, no norte de Trás-os-Montes. Nem caixote do lixo. O que não havia era lixo. Os barrosenses não compravam nada embalado, portanto não sobravam embalagens. O que havia era o lato do porco, onde iam parar todas as sobras orgânicas da cozinha: cascas, pevides, caroços, restos dos pratos aos quais se acrescentavam legumes especialmente cultvados para o reco. Com a emigração e vinda ocasional dos emigrantes a casa, aumentou o consumo e chegou o caixote do lixo. Como os barrosenses emigrados não conheciam o conceito de caixote do lixo, este entrou na vida quotidiana com o nome de pubela, o aportuguesamento de «poubelle». E veio para ficar.

Cada vez os nossos caixotes do lixo enchem mais rapidamente, sobretudo com embalagens, porque quase tudo o que comemos, mesmo os frescos vem embalado. se experimentar fazer uma semana de comida não embalada, irá perceber como o seu caixote do lixo não precisou de ser despejado senão no fim dos oito dias...

 Na cozinha, a ideia é aproveitarmos todas as sobras e não desperdiçarmos comida. Quantas vezes guardamos restos em caixinhas no frigorifico, só para fazer o luto, porque passados dois dias vai tudo daqui para o caixote do lixo? E os legumes que comprámos à toa, sem destino, e que acabam por apodercer na gaveta do frigorífico? E as latas que passaram o prazo? É forçoso que comecemos a controlar o nosso consumo em todas as áreas. Comecemos pela cozinha.

 

 

A PASTELARIA DE JERONYMA CATHARINA

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Andava eu à procura de receitas com chocolate para o livro que estou a escrever e que irá sair em 2018, Edição CTT, quando encontrei na minha biblioteca este extraordinário livro de pastelaria. A autora escreve com o pseudónimo de Jeronyma Catharina, mas assina a dedicatória com as iniciais O.D. Pelo prefácio de um tal padre José Gonçalves Remédio, é alentejana, da zona do Vimieiro, onde este foi escrito. O livro chama-se O Confeiteiro Pratico Portuguez, é da Antiga Casa Bertrand, 1908.

Afirma o padre Remédio que este livro é especial, não é como os outros «em que nem todas as suas receitas são praticáveis e quantas vezes fazem exgotar a paciencia e causam a perda total os ingredientes empregados!» Como tem razão, ainda hoje se publicam livros de receitas, mais de cozinha do que de pastelaria, em que a maioria das mesmas nem sequer foi testada e em que as quantidades dos ingredientes são completamente inventadas na ocasião. Quantas vezes se mudam um ou dois ingredientes, só para evitar o plágio, sem sequer experimentar se estes resultam. Depois, quem faz as receitas em casa pelo livro pensa que estas não resultaram por falta de jeito seu.

Mas neste livro, assegura o prefaciador, «Todas as receitas n’elle contidas, sem excepção de uma só, foram primeiro experimentadas pela autora.

As receitas mais conhecidas, como por exemplo os biscoitos Esses ou o Toucinho do Céu surgem em inúmeras versões. É que em aldeias que distam 3 ou quilómetros entre si as versões de um prato podem ser muito diferentes.

As receitas estão bem explicadas. Uma delas, a de queijada, ensina a fazer as pregas da massa exterior à mão, como antigamente se fazia antes do aparecimento das forminhas pregueadas. Para mim, fazer aquela massa finsisima das queijadas já é um desafio, imagino o que seja preguear a massa!!!

Se puder deitar-lhe a mão, não perca.