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Conversas à Mesa

TINTOS E PETISCOS

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Em termos de restauração, cada vez estou mais feliz com o Alentejo e mais descontente com Évora e arredores. Encontram-se verdadeiros tesouros em aldeias e vilas, longe de tudo. A sua qualidade atrai os comensais que muitas vezes ali vão de propósito, percorrendo grandes distâncias para «recomerem» um prato que lhes agradou ou simplesmente sentirem novamente os perfumes da cozinha regional. É o caso da Taberna Tintos e Petiscos, um pequeno espaço de 16 lugares onde apenas trabalha o casal Joaquim e Fátima Ramalho. As tarefas são intermutáveis, embora geralmente a senhora esteja na cozinha e o senhor na sala. Os tintos, e os outros, estão todos em exposição em bonitos armários, os petiscos são anunciados numa lousa. Há os fixos, exigida a sua presença ao longo de todo o ano, e os que vão e vêm ao ritmo das estações. Sempre presentes, o rabo de boi guisado, a feijoada de pato, os croquetes de coelho bravo, os mexidos com espargos e farinheira.

No restaurante, servem-se os produtos da horta do casal, nomeadamente o belo tomate que serve de base ao gaspacho, e os bichos ali criados, como o pato da feijoada ou as galinhas para corar.

Como éramos um grupo de 4 pessoas, tive a oportunidade de provar a feijoada de pato, com um feijão branco grande e extremamente cremoso e o sabor doce dos tocos de cenoura a acompanharem bem o pato desfiado, tudo muito suave), o arroz de rabo de boi (já mais espevitado, a sobrepor-se a textura algo gelatinosa da carne à flexibilidade do carolino), os croquetes de coelho-bravo (a carne a predominar sobre os molhos, mas mantendo a suculência) e o gaspacho à Tintos (de base andaluza enriquecida (o tomate sempre a estrela, complementado pelo ovo cozido, o presunto e a doçura inesperada das sultanas). Tem tudo o que provei se distinguiam os diversos sabores, tudo estava equilibrado, nunca houve um abuso de nenhum deles (o terrível alho que tudo mata estava domesticado, fazendo o seu papel na perfeição, mesmo nas belíssimas migas que acompanhavam os croquetes). A matriz alentejana bem presente, sempre reconhecível, mas permitindo combinações diferentes e bem sucedidas.

De sobremesa, duas versões de encharcada, as duas magníficas: uma clássica, outra de noz. Do melhor que tenho comido, saídas das abençoada mãos da Fátima Ramalho. E ainda um magnífico bolo rançoso, típico da zona de Monforte, com amêndoas e chila.

O vinho bebido foi alentejano, da herdade de Papa Leite.

Não estarei muito tempo sem lá ir, quero sentir os perfumes de Outono e Inverno no Tintos e Petiscos.

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TINTOS E PETISCOS - não ir sem reservar

R. Dr. Antonio Sardinha nº2 

7450-275 Vaiamonte, Monforte

Tel. 960248138

 

BAcALHAU À BRÁS E BRAZES

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Este bacalhau tem vários irmãos gémeos, nomeadamente o À Universal e o À Lisbonense. Embora o nome engane, esta última confecção é portuense e não lisboeta. O seu nome é o do célebre café/restaurante Lisbonense, onde também era famoso o Bacalhau à Gomes de Sá. O Bacalhau à Universal tem autoria atribuída ao Mestre João Ribeiro, quando este grande cozinheiro (pela mão de quem ainda tive a sorte de almoçar várias vezes no Aviz do Chiado) trabalhava ainda no Hotel Universal, de Pedras Salgadas, no início da década de 1930. Surge no livro de receitas do seu antecessor na cozinha do Aviz, Manuel Ferreira, com esse mesmo nome, mas não consta do caderno de receitas do Mestre. Conta José Quitério, no prefácio a O Livro de Mestre João Ribeiro,

que o chef de cozinha do Universal costumava demolhar o bacalhau num rio vizinho ao hotel, em águas correntes como era aconselhável. Certa vez, quando foi por ele, nicles, tinham‑no roubado… Foi João Ribeiro, na altura cozinheiro de 2ª no hotel, quem salvou a situação, desfiando bacalhau por demolhar e lavando‑o em várias águas quentes e frias para o dessalgar. O resultado foi o Bacalhau à Universal, igualzinho ao À Brás.

A primeira menção em livros de cozinha lusos a pratos de bacalhau com algumas semelhanças ao À Brás surge, em 1715, pela mão de Francisco Borges Henriques, em Receitas de milhores doces e de alguns guizados, já que não existe nenhuma receita de bacalhau no Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues. Trata‑se de umas Frigideiras de bacalhau, talvez os mais antigos antepassados do atual À Brás.

Setenta anos depois, Lucas Rigaud refere um prato de bacalhau lascado, mexido com ovos e manteiga, que também parece um antecessor do À Brás. No Culinária Portuguesa, de Olleboma, o capítulo bacalhoeiro termina com o Bacalhau Mexido com Ovos. A receita é idêntica à do À Brás, usando também o bacalhau cru desfiado, as batatas fritas em palitos (mas de tamanho maior, com meio centímetro de lado), a cebola só amaciada em azeite. No fim, juntam‑se a estes ingredientes os ovos batidos, a salsa e a pimenta. De diferente só tem a inclusão de um par de colheres de leite nos ovos, técnica que, por vezes, é usada em omeletas e mexidos.

No livro Tesouros da Cozinha Tradicional Portuguesa, Maria Emília Cancella de Abreu dá a receita do Bacalhau à Brás sem cebola, sendo tudo o resto igual à receita que hoje fazemos. A autora afirma que só o À Universal leva cebola, levando‑nos a pensar que o atual À Brás poderá ter tido origem nuns simples ovos mexidos com batatas fritas a que se acrescentou bacalhau. Referências recentes e firmes a este famoso bacalhau chegam‑nos pela mão do «mimoso e biqueiro» escritor José Gomes Ferreira, via precioso José Quitério. E citando este último, citando o primeiro: «Referindo‑se aos amigos da adolescência literária, “só os invoco em ceias nas tasquinhas do Bairro Alto, diante do bacalhau À Brás, comido mesmo na baiuca do inventor desse prato, agora - dizem‑me - obrigatório na barafunda comilona de todos os casamentos elegantes.2. Tendo José Gomes Ferreira nascido em 1900, podemos situar estas ceias de adolescência na referida baiuca no fim da década de 10, do século XX.

O Bairro Alto, apenas construído no virar do século XV para o XVI, fora poupado ao terramoto de 1755. Neste bairro, onde coabitavam palacetes e casas de gente menos endinheirada, foi surgindo uma vertente intelectual e artística de academias e teatros, reforçada no século XIX pela instalação de vários jornais. Ao longo do tempo, esta zona foi ganhando as características boémias e os botequins e casas de pasto que tinha no tempo da adolescência de Gomes Ferreira, que volta a referi‑los em Coleccionador de Absurdos: «ambientes de boémia malandra do “Paco”, do “Ferro de Engomar”, do “Bacalhau” e do “Brás” - o inesquecível Brás inventor genial do bacalhau À Brás.

Não admira pois que numa dessas «baiucas» tivesse sido inventado este magnífico prato de bacalhau, porventura a partir dos singelos e poucos elementos que costumam ser a base de quase todos os pratos bacalhoeiros: além do próprio, a batata e os ovos. É possível que originalmente esta criação do Brás não fosse mais do que uns ovos mexidos com batatas fritas enriquecidos com lascas de bacalhau, sobretudo quando a lemos através das receitas atrás citadas, nomeadamente a de Maria Emília Cancella de Abreu.

No fim do século XX, o À Brás, ou seja, à moda do Brás, deu polemicamente origem ao «Brás de», entendido como uma base de azeite, cebola e outro ingrediente, seja ele legume ou proteína. Nos anos 1990, popularizaram‑se os «brazes» de legumes, de frango, de peixe, de modo similar aos «bulhões pato», que deixaram de ser exclusivamente de amêijoas. Esta apropriação ainda hoje suscita indignação em alguns meios mais tradicionais, advogando‑se que este prato pertence ao nosso património cultural e como tal deve ser mantido e defendido, rigidamente inalterado. Mas não se ficam por aqui os ataques que tem sofrido.

Com o nome de Bacalhau À Brás bem estampado na carta, vários espaços servem uma base de quaisquer legumes e ovos encimados por uma posta de bacalhau inteira.

Hoje é considerado um dos mais populares pratos da nossa cozinha e possivelmente um dos mais habilitados a tornar‑se um ícone gastronómico em termos turísticos. Chefs de grande prestígio, como José Avillez, nunca o desconstruíram, apesar de serem seus grandes apreciadores. Vive este popular e muito prestigiado prato de bacalhau do contraste de texturas, do estaladiço da batata‑palha e da cremosidade dos ovos, pelo que deve ser rematado já com os convivas à mesa.

 

Aqui fica a receita do BACALHAU À BRÁS

Para 4 pessoas

 

500 g de postas de bacalhau, demolhadas

1 dl de azeite

600 g de batata, cortada em «palha» (tirinhas muito finas)

400 g de cebola, cortadas em meias‑luas muito finas

2 dentes de alho, picados

6 gemas

2 ovos inteiros

Azeitonas pretas, descaroçadas

Salsa picada

Azeite ou óleo para fritar a batata

Sal e pimenta

 

 

 

  1. Retire a pele e as espinhas ao bacalhau cru e desfie‑o.
  2. Entretanto, frite as batatas em azeite, ou óleo, bem quente, não deixando ganhar demasiada cor, e depois escorra‑as em papel de cozinha.
  1. Num tacho, aque.a o azeite e nele amacie a cebola e o alho, sem deixar ganhar cor.
  2. Nessa altura, junte o bacalhau desfiado e mexa com muito cuidado, adicionando a batata palha.
  3. Numa tigela, bata as gemas com os ovos inteiros. Depois, com o lume brando, deite os ovos no tacho do bacalhau, mexendo com um garfo. Retire o tacho do lume enquanto os ovos ainda estão bem cremosos, para não secarem, e passe de imediato para uma travessa.
  4. Polvilhe com salsa, enfeite com azeitonas pretas e sirva de imediato.