CARNE A LOBOS
Comer carne de vaca tornou-se recentemente um crime capital. Alguns abandonaram-na definitivamente, outros raramente a comem, e ainda outros comem-na com sentido de culpa. Eu pertenço ao último grupo. A razão que provoca essa repulsa pela carne de vaca tem a ver com a poluição que estes animais fazem devido à grande libertação de gases de metano. Como, nos nossos dias, ninguém pode ficar indiferente às questões ambientais, partilho convosco neste post aquilo que sei e aquilo que me aflige em relação ao problema e às actuais alternativas à carne de vaca, desejando que esta informação possa ser útil para as vossas escolhas.
O problema
No fim do corrente ano de 2019, serão 17 000 os restaurantes a juntarem-se ao Burger King e a servirem o hambúrguer (Whopper) de carne falsa, a carne sem carne, fabricado por uma firma norte-americana, a Impossible Foods, que até agora apenas o comercializa nos EUA.
Este hambúrguer foi feito para satisfazer os vegetarianos, mas também os carnívoros consciencializados para os malefícios das vacas. Estes animais, que já atingiram o pantagruélico número dos 1,5 mil milhões, um por cada 5 pessoas, foram recentemente declarados culpados por danos ao nosso planeta e passaram à categoria de inimigo a abater. Não no sentido actual, porque já são abatidas, mas no sentido da erradicação total. O problema tem a ver com os seus arrotos, mas também com os seus puns, carregados de metano, proveniente do trabalho dos microrganismos que actuam nas suas entranhas para decompor o que ingerem. Este gás tem uma forma potente de aprisionar o calor e, embora exista em menos quantidade do que o dióxido de carbono, parece ser mais poderoso na formação do efeito de estufa. Porém, não é só a vaca que é arrotadora e punzarenta: todos nós somos, nomeadamente o porco, a ovelha, a cabra, etc. Toda esta bicharada parece ser responsável por quase 15% da libertação de metano no nosso planeta. Uma grande parte do resto provém de fugas do gás natural que usamos em nossas casas enquanto outra parte parece vir da transformação dos plásticos deitados no lixo ou no mar e, sobretudo, do crescente derretimento dos gelos polares.
Eventuais contribuições para melhorar o problema
O regime extensivo do gado vacum
Como a maioria de nós ainda aprecia muito o seu bife (não há muito tempo, a bifalhada era um luxo nas nossas casas), procuram-se soluções que não levem ao desaparecimento da carne na nossa mesa. Indubitavelmente, a criação de gado em regime extensivo é muito menos danosa do que a de regime intensivo, e deveríamos favorecê-la, já que
uma relação diferente com o terreno e outro tipo de alimentação baixa a quantidade de metano libertado.
Actualmente, estão em curso experiências em que a alimentação das vacas é modificada (por exemplo, enriquecida com probióticos), levando a uma dramática redução da emissão de metano. Contudo, os números são muitas vezes aquilo que queremos que eles sejam, dependendo dos factores que escolhemos para trabalhar.
As leguminosas e a questão da soja
A soja é uma das 4 principais cultivos do mundo, logo a seguir ao trigo, ao arroz e ao milho, sendo que cerca de 80% do total da soja plantada destina-se a rações para alimentar o gado. Não é de admirar que os 3 principais produtores de soja sejam também os maiores produtores de gado vacum: os EUA (80 milhões de toneladas), Brasil (70 milhões) e Argentina (45 milhões). Cerca de 60% da soja produzida pelo Brasil é comprada pela China que apenas produz 14 milhões de toneladas, mas importou 95 milhões em 2017, cada vez mais necessários para a produção de óleo de soja e de farinha de soja. Esta última alimenta o crescente apetite dos seus habitantes por carne, ovos, leite e peixe de aquacultura. Basta pensarmos que metade dos porcos de todo o mundo são criados na China e alimentados a farinha de soja. Apenas 10% da soja usada na China se destina directamente à alimentação humana (tofu e outros derivado e molho de soja)
Entre 2006 e 2017, foram desmatados 220 000 quilómetros quadrados da floresta amazónica e do Cerrado brasileiro, dez por cento dos quais para plantar soja (22 000 km2). A própria desmatação provocada pelo fogo causa a libertação de dióxido de carbono.
Grande parte da soja cultivada é geneticamente modificada: 85% da soja brasileira e 90 % da soja dos EUA são OGM.
Grande parte das imitações da carne é feita à base da proteína vegetal de leguminosas (soja, feijão, lentilhas) ou/e cogumelos, de textura e sabor pouco entusiasmantes. O seu grande problema não é apenas a falta de autenticidade do sabor (que pode ser reconvertido através do sabor umami, por exemplo da soja), mas sobretudo a má e friável textura dos preparados de falsa carne à base de leguminosas e seus derivados.
O blogger Nuno Mota, do Alho-francês é perito neste tipo de receitas de hambúrgueres vegan à base de leguminosas, como este da fotografia, cujo link está aqui.
O hambúrguer de cogumelos e feijão-preto do blog Alho-francês é vegan
A carne sem carne ou as faux meats
Devido à crescente procura, a indústria tenta produzir melhor carne sem carne. Por exemplo, a Beyond Meat (BB) produz um hambúrguer à base de ervilhas que fica rosado por dentro devido ao corante de sumo de beterraba. Veja-se aqui a lista de ingredientes que estes hambúrgueres contêm segundo a embalagem dos mesmos «Água, proteína de ervilha (18%), óleo de colza, óleo de coco refinado, aroma, aroma de fumo, estabilizadores: celulose, metilcelulose, goma-arábica; amido de batata, maltodextrina, extracto de levedura, sal, óleo de girassol, levedura seca, antioxidantes: ácido ascórbico, ácido acético; corante: concentrado de sumo de beterraba; amido modificado, extracto de maçã, sumo de limão concentrado.» Se o principal ingrediente é a água, imagine o que encolhem...Porém, o requinte extremo é a marmorização do hambúrguer, que se torna mais gorduroso e suculento através da introdução de pedacinhos de óleo de coco e de manteiga de cacau que derretem quando o hambúrguer é grelhado. Para imitar mais a carne, o interior fica rosado devido ao sumo de beterraba e o exterior castanho escuro devido ao extracto de maçã cujo açúcar carameliza. A BM chama a atenção na embalagem para o facto do seu produto não levar soja (pelos vistos uma coisa má, presente no do concorrente de que falaremos em seguida, nem OGM).
O hambúrguer da Beyond Meats como está no site da empresa.
A Impossible Foods (IF) vai ainda mais longe na produção de um produto que satisfaça até os carnívoros. Mas que produz significativamente menos gases com efeito de estufa, gasta menos água e ocupa muito menos terra. A IF criou o hambúrguer vegetal que sangra mas com sabor a sangue e a carne mal passada e aroma a carne cozinhada. É feito à base de soja, trigo (usado para dar a textura mais «encaracolada»), milho, coco e batata. Leva ainda metilcelulose, que não é digerido e actua como espessante. E de heme, a grande novidade. Oheme é uma minúscula partícula que existe quer nos animais quer nas plantas e que dá o sabor de carne à carne e produz o «sangue» tão apreciado por quem gosta dos bifes e dos hambúrgueres mal passados. A fonte de heme é uma proteína chamada mioglobina nos animais, nas leguminosas, como a soja, chama-se leg-hemoglobina e existe, por exemplo, nos nódulos das raízes da soja. Como é difícil e caro o processo de extracção do heme vegetal a partir das raízes, a IF começou a produzi-lo a partir da fermentação de leveduras geneticamente modificadas através da introdução do ADN do heme da soja.
O heme figurado da Impossible Foods
O hambúrguer da Impossible Foods (site da empresa): veja-se como a espessura do hambúrguer melhora o seu aspecto
O IF burger foi adoptado pelo Burger King para fazer um Whopper, o Impossible Whopper (foto de início do post). O hambúrguer das cadeias de Fast Food acaba por se tornar pouco importante no conjunto final, abafado pelo pão, inundado pelos molhos e rodeado pela cebola e pelo picle de pepino, amaciado pelo queijo. O hambúrguer em si constitui cerca de 30% do produto total em termos de peso, um fino disco de espessura fina cujo sabor provém tão só das marcas da grelha no seu exterior, quase suficientes para desencadear uma reacção de Maillard e dar sabor até a um círculo de cartão, quanto mais a um disco de soja e trigo, cujos açúcares caramelizam facilmente.
O Impossible Foods Whopper (Burger King) - fotografado no Texas
O Impossible Foods Whopper (Burger King) - a textura é visível nesta foto
Quando quiser comprar hambúrgueres de fast food, por exemplo, um de carne de vaca versus um de falsa carne, experimente isolar apenas o hambúrguer. Retire-os da sanduíche, parta-os com a mão e compare-os. De certeza estarão ambos demasiado passados, secos e sensaborões, a gritar pela sua grande escolta de molhos, picles e gorduras diversas.
O mesmo não acontece a um bom hambúrguer, sobretudo quando resulta de carne de vaca de uma boa raça, criada em regime extensivo e servida ainda rosada. Aí a competição é impensável.
Duas coisas são inegáveis: é urgente e incontornável que façamos algo pelo nosso ambiente e pelo nosso planeta, reagindo a tempo de nos salvarmos enquanto espécie; a outra é que os substitutos da carne de vaca estão a melhorar de qualidade. É preciso manter uma mente aberta e experimentar.