A IDA AO SUPERMERCADO
É das única actividades a que tenho direito, a par das idas à farmácia, ao lixo e a caminhar. E é uma carga de trabalhos.
Acho que estou a ficar paranóica com as poucas saídas de casa que faço. Não serei caso único. Assim que ponho o pé fora, parece que saí da rede electrificada do Parque Jurássico para a natureza cruel. Tento encara estas saídas com uma espécie de método cirúrgico, tipo Anatomia de Grey. Sabem quando o XXX entra na sala de operações? A lavagem das mãos, o abrir da porta com as costas, o tirar das luvas para o caixote do lixo que se abre com o pé, enfim uma série de gestos meticulosamente ensaiados que conduzem à esterilização total. A única semelhança da série com a vida real é que também consigo transformar a ida ao supermercado num drama.
Se há bicha, é um tormento. A malta mede-se de alto a baixo enquanto espera à distancia de um metro, que sabemos perfeitamente não resolve nada, sobretudo se o vizinho da frente estiver a gritar ao telefone e a cuspir montes de partículas peçonhentas de cuspo, levando eventualmente a passageiros as criaturinhas virólicas. Depois de lá estar dentro, espanto-me sempre com a quantidade de gente que lá metem e como estamos constantemente a cruzar-nos ombro a ombro. Mas o que mais me assusta é a quantidade de gente que ainda encontro sem máscara. Nem sequer um lenço a tapar a boca. Ergo, a lançarem partículas de cuspo sobre toda a mercadoria, parte da qual eu irei levar para o santuário covidfree de minha casa. Eu lá deambulo de luvas e máscara. O meu dilema é «Compro muitas coisas e depois tenho uma trabalheira em casa a desinfectar aquilo tudo? Ou compro pouca coisa e tenho de voltar novamente passados alguns dias?». Levo sempre mais do que queria. Depois, à saída, começa a palhaçada. Para pagar meto as mãos com as luvas sujas dentro da carteira. Entro no carro, tiro as luvas para pegar no volante? E depois quando sair do carro, como pego nos sacos supostamente contaminados?
Criei na minha varanda uma zona de sujos, onde certas coisas podem fazer a quarentena. Para lá vão os sacos todos. Mas há coisas que têm de ser guardadas, frigorificadas. Começo a tirar embalagens plásticas e a borrifá-las com uma solução de lixívia. Tento tirar as coisas de dentro das embalagens de cartão, que não podem ser borrifadas. Abro as caixas e atiro os conteúdos para cima de uma mesa. Com as luvas postas. Atiro os cartões fora e venho lavar as mãos. E assim passo uma tarde inteira, de total paranoia, a arrumar a meia dúzia de tralhas que comprei. Sem nunca conseguir fazer dois movimentos seguidos à la Anatomia de Grey. Estou mesmo a ficar paranóica.