Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Conversas à Mesa

O PÃO DO TORRÃO

1914401_102453259769594_1964566_n.JPG

 

 

Chama-se-lhe pão de cabeça ou pão alentejano e, quando bem feito, não tem rival. É alvo, nele só entra o trigo porque este foi o cereal mais plantado no Sul do país. É a base da culinária alentejana e ganha graça quando combinado com as ervas que crescem pelos campos. Por si mesmo, é versátil: adoro cortá-lo em fatias da grossura de dedos gordos e parti-lo em pedaços grosseiros, aptos a receberem os molhos. Em fatias finíssimas e bem tostadas serve para a petiscada e deixa-se cobrir de presunto, enchidos ou queijos. Torrado, em fatias médias casa bem com o azeite ou a manteiga. Em quadradinhos fritos, complementa gaspachos. Com o que sobra, se é que sobra, devidamente amanhecido, fazem-se açordas e migas a preceito.

O seu gosto levemente ácido provém do fermento usado, uma massa velha; a sua textura, do uso de uma parte de trigo duro ou rijo. Para a qualidade do resultado final contribui a sua cozedura em forno a lenha. É, provavelmente, o mais conhecido dos nossos pães, mas também o mais desastradamente copiado. Emuitas padarias e supermercados são vendidas versões de qualidade muito inferior como pão alentejano, ou nos mais honestos, como tipo alentejano. Tenho pena que na recente vaga de novas padarias, que tanta atenção concedem ao importado sourbread, não tenha havido o cuidado de divulgarem este magnifico e versátil pão. No Alentejo, ainda se pode comprar de qualidade. Um desses locais são as Padarias Reunidas do Torrão, no Torrão, um pouco a norte de Ferreira do Alentejo, abertas em 1954. O pão é muito bom, mas se lá for pelo pão traga também alguma doçaria local, como as costas (dobradas ou estendidas), feitas com a massa do pão e adoçadas para guloseima, as queijadas ou os folhados alentejanos, com ou sem doce de gila. Sobretudo, traga muito pão. Congele-o cortado em fatias para torradas ou inteiros para outros usos.

 

Padarias Reunidas do Torrão

  1. Dr, António J. Conceição 40

Torrão

7595-140 Torrão

Tel: 265 669 159

 

 

 

IMG_2078.jpg

IMG_2077.jpg

O pão alentejano ou de cabeça do Torrão

 

 

133711_188509931163926_7546362_o.JPGOs folhados alentejanos

 

 

461963_470647719616811_1217025757_o.JPG

Uma das dificuldades da confecção das queijadas é forrar as forminhas caneladas com uma massa superfina. O processo passa pelos grandes números...A massa é estendida sobre as forminhas e depois tratada à mão com muito cuidado para que não se rompa. adoro fazer queijadas  em casa, mas esta é sempre o meu problema.

PHOTO-2020-06-14-13-19-57.jpg

PHOTO-2020-06-14-13-19-57-1.jpg

Um dos fornos do pão tem uma roda que permite deslocar a base do forno para facilitar a entrada dos pães. É uma raridade.

 

 

10391856_105817976099789_911776_n.JPG

10391856_105817972766456_2955243_n.JPG

 

10391856_105817969433123_1382581_n.JPG

As costas dobradas

NÃO DEIXEM QUEIMAR O MEU PÃO

Queimado ou esturricado passaram de termos pejorativos a desejáveis. A nova tendência das grelhas e dos maçaricos aplica-se a um vasto número de alimentos, que se querem coloridos de negro, com a textura estaladiça e o sabor amargo e umami das partes queimadas a tornar-se desejável. No limite, o sabor chega a tornar-se desagradavelmente acre, sendo o equilíbrio entre o amargo e o doce da caramelização muito difícil de alcançar. Porém, quando este equilíbrio mimoso se consegue, torna-se o céu das reações de Maillard. Lembremo-nos do incrível aroma da caramelização do leite-creme, que vindo da mesa do vinho do lado no restaurante se torna capaz de nos fazer reservar um antes sequer de encomendarmos o prato principal. A moda do queimado também se estendeu ao mundo do pão. Pão queimado e pulverizado usa-se para aromatizar e dar cor a molhos e até a gelados. Quando, aqui há uns 3 anos, começou a moda do surdough, a massa mãe, importada da Inglaterra e dos EUA, os nossos padeiros começaram a vender pão com a côdea demasiado queimada. O célebre chef argentino Francis Mallmann chama-lhe a «a incerta borda queimada».

Lembremo-nos, porém, que o queimado dos alimentos pode trazer malefícios (a acrilamida que dele resulta parece ser cancerígeno). Para mim tem outros inconvenientes. O sabor acre obriga-me a cortar a parte da côdea, desequilibrando o ratio miolo/côdea, tão importante em cada tipo de pão. Não me oponha a uma crista levemente queimada, mas detesto encontrar a base do pão, ou grande parte da sua parte de cima, todas pretas.

São diversas as razões desta moda do enegrecimento do pão. O alinhamento com esta tendência do queimado, que já vem do ano passado, é a primeira que me ocorre. Por outro lado, o pão torna-se visualmente muito apelativo e fotografável, ideal para o instagram. O sourbread (pão levedado pelo processo de uma lenta fermentação natural que lhe empresta uma maior acidez) é cozido a temperaturas elevadas, muito superiores a 200ºC, a fim de prosseguir o processo de levedação da massa. Um pão bem cozido tem mais tempo de duração e estraga-se menos, mas o resultado final pode ser castanho escuro, embora não seja obrigatório que resulte queimado. Quando feito artesanalmente, os ingleses costumam dar-lhe um corte para que uma das partes forme uma espécie de crista fina que ganha um tom mais escuro. Esta pequena parte de côdea queimada, uma espécie de crista, ao longo de todo o pão é suficiente para introduzir os tais sabores que referimos em cima, sem necessidade de vender um pão cuja côdea de baixo está completamente preta e tem de ser retirada com a faca.

Se um pouco de queimado, com os seus cambiantes doces e ácidos, o seu leve umami e a sua textura estaladiça podem ser desejáveis, demasiada superfície do pão negra não apelam

COMER COM OS OLHOS DIGITAIS

quitério.jpg

 

 

Hoje tudo se quer digital, e a informação dirige-se sobretudo à visão e ao ouvido, não conseguindo ainda chegar aos outros sentidos. Se é verdade que durante os meses de confinamento o digital foi a salvação em muitos casos, quer como teletrabalho quer como lazer, é preciso também referir que este meio deve existir para nós enquanto complemento. A vida e as emoções são feitas de sabores, de cheiros, de toques e contactos que o digital não nos pode ainda dar.

O mundo da comida já tinha uma grande representação digital; durante o confinamento essa presença reforçou-se. Sem possibilidade de frequentar os restaurantes, obrigadas a cozinhar todas as refeições em casa, a maioria das pessoas dedicou-se a comer e a postar fotografias de comida. Vimos de tudo, desde o esparguete com atum ao cachucho cozido com batatas, tudo foi publicável em quantidades massivas de fotos com os respectivos enquadramentos domésticos. A vaga do pão foi internacional e possivelmente a mais badalada. O surto de posts foi tal que faria corar de inveja Jesus Cristo e o seu milagre da multiplicação dos pães. Mas um pão nem sequer é apelativo visualmente, carecendo de ser acompanhado pelo menos do cheiro que emana do seu calor, precisando dele como pão para a boca. Em breve chegou o mundo do takeaway, e lá conseguimos ver de vez em quando umas quantas bonitas e apelativas fotos de alguns restaurantes, alguns de topo.

Durante a quarentena, também se sofreu numa outra forma de comer, o sexo, e os apaixonados viram-se separados, privados do consolo do cheiro e do toque. Não sendo por acaso que no sexo o povo chama também comer ao usufruir, também aí houve quem tivesse que comer só com os olhos. E em ambas as vertentes, comida e sexo, o sentido da visão anda sobrevalorizado, quando ambos são para ser gozados com todos os sentidos. Não só o ouvido, mas também o tacto, o sabor e o cheiro, todos eles já foram desenvolvidos recentemente na experiência gastronómica pelos chefs.

Ficámos entregues à porn food dos insta e dos FB. Comida cujo nome deriva da sua função: uma aproximação à masturbação do palato. Palato esse que, na minha opinião, fica mais excitado com uma crónica de crítica gastronómica do José Quitério, sem qualquer imagem de comida, do que com essa primária pornfood. Os pratos referidos nessas crónicas semanais do Expresso eram como mulheres ou homens bem vestidos, que nos excitam mais do que qualquer nudez ao fazerem-nos pensar em como despi-los, ao fazerem funcionar a nossa imaginação e todos os nossos sentidos.

Mas voltemos ao princípio, se é verdade que o digital é importantíssimo, e foi crucial, no confinamento, não quer dizer que tenha de ficar como regra. Isso nos dirão, por exemplo, os professores, que sabem que o ensino à distância não substitui a versão presencial. Talvez esteja na altura de os foodwriters enriquecerem a experiência que transmitem ao público, publicando fotografias, sim, mas escrevendo mais sobre a sua experiência, envolvendo todos os sentidos. Numa fotografia, apenas fica o registo da visão. É certo que comemos com os olhos, mas de preferência usemos todos os outros sentidos.

Fotografia © Diana Quintela/Global Imagens