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Conversas à Mesa

COMER COM OS OLHOS DIGITAIS

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Hoje tudo se quer digital, e a informação dirige-se sobretudo à visão e ao ouvido, não conseguindo ainda chegar aos outros sentidos. Se é verdade que durante os meses de confinamento o digital foi a salvação em muitos casos, quer como teletrabalho quer como lazer, é preciso também referir que este meio deve existir para nós enquanto complemento. A vida e as emoções são feitas de sabores, de cheiros, de toques e contactos que o digital não nos pode ainda dar.

O mundo da comida já tinha uma grande representação digital; durante o confinamento essa presença reforçou-se. Sem possibilidade de frequentar os restaurantes, obrigadas a cozinhar todas as refeições em casa, a maioria das pessoas dedicou-se a comer e a postar fotografias de comida. Vimos de tudo, desde o esparguete com atum ao cachucho cozido com batatas, tudo foi publicável em quantidades massivas de fotos com os respectivos enquadramentos domésticos. A vaga do pão foi internacional e possivelmente a mais badalada. O surto de posts foi tal que faria corar de inveja Jesus Cristo e o seu milagre da multiplicação dos pães. Mas um pão nem sequer é apelativo visualmente, carecendo de ser acompanhado pelo menos do cheiro que emana do seu calor, precisando dele como pão para a boca. Em breve chegou o mundo do takeaway, e lá conseguimos ver de vez em quando umas quantas bonitas e apelativas fotos de alguns restaurantes, alguns de topo.

Durante a quarentena, também se sofreu numa outra forma de comer, o sexo, e os apaixonados viram-se separados, privados do consolo do cheiro e do toque. Não sendo por acaso que no sexo o povo chama também comer ao usufruir, também aí houve quem tivesse que comer só com os olhos. E em ambas as vertentes, comida e sexo, o sentido da visão anda sobrevalorizado, quando ambos são para ser gozados com todos os sentidos. Não só o ouvido, mas também o tacto, o sabor e o cheiro, todos eles já foram desenvolvidos recentemente na experiência gastronómica pelos chefs.

Ficámos entregues à porn food dos insta e dos FB. Comida cujo nome deriva da sua função: uma aproximação à masturbação do palato. Palato esse que, na minha opinião, fica mais excitado com uma crónica de crítica gastronómica do José Quitério, sem qualquer imagem de comida, do que com essa primária pornfood. Os pratos referidos nessas crónicas semanais do Expresso eram como mulheres ou homens bem vestidos, que nos excitam mais do que qualquer nudez ao fazerem-nos pensar em como despi-los, ao fazerem funcionar a nossa imaginação e todos os nossos sentidos.

Mas voltemos ao princípio, se é verdade que o digital é importantíssimo, e foi crucial, no confinamento, não quer dizer que tenha de ficar como regra. Isso nos dirão, por exemplo, os professores, que sabem que o ensino à distância não substitui a versão presencial. Talvez esteja na altura de os foodwriters enriquecerem a experiência que transmitem ao público, publicando fotografias, sim, mas escrevendo mais sobre a sua experiência, envolvendo todos os sentidos. Numa fotografia, apenas fica o registo da visão. É certo que comemos com os olhos, mas de preferência usemos todos os outros sentidos.

Fotografia © Diana Quintela/Global Imagens