CONHECER O FOIE GRAS
Foto de receita de João Antunes em O Grande Livro dos Chefs, Fátima Moura, Editora Quimera
O foie gras, politicamente incorrecto?
“Servir o homem”, do Damon Knight, foi um dos primeiros contos de ficção científica que li. Neste, uma raça aparentemente amistosa de extraterrestres vem à Terra ajudar a acabar com a fome. Todos eles se fazem acompanhar de um livro, que guardam com muito cuidado e cujo sugestivo título é “Servir o homem”, que os terrestres acreditam ser a sua missão. Cumprida esta, regressam ao planeta natal, levando consigo um grande número de humanos, ansiosos por conhecerem novos mundos. A reviravolta final da história dá-se quando os homens encontram um exemplar desse livro que ficara esquecido na Terra e se apercebem que este não passa afinal de um livro de cozinha, recheado de receitas para engordar e servir o homem! Para mim, que sempre adorei foie gras, mas nunca consegui ultrapassar a má consciência do gavage, esses extraterrestres assumiram a identidade de supergansos, vindos do espaço com a missão de vingarem os seus primos palmípedes terrestres através desta forma de gavage humana. Mas este pavor não me tem impedido de continuar a deliciar-me com o foie gras.
O gavage é um processo de alimentação forçada destinado a aumentar o volume do fígado das aves, obrigando-as durante os cerca de doze a quinze dias que precedem o seu abate a ingurgitar enormes quantidades de alimento, em geral de milho. Como consequência, o fígado dos gansos e dos patos chega a decuplicar de tamanho. Digamos que o gavage não é mais do que uma técnica em que o futuro prato vai sendo preparado enquanto vivo. Para suavizar a minha má consciência, obrigo-me a lembrar que este processo foi inventado pelos próprios gansos que, no princípio do Inverno, antes de migrarem, ingurgitam incríveis quantidades de comida, a fim de poderem armazenar a energia sob a forma de gordura no fígado. Como alternativa a este processo de gavage, foi recentemente criado o foie gras “ético”: uma empresa espanhola da Extremadura recebeu um prémio no Salon International de L’Alimentation, em França, pelo seu foie gras sem recurso à alimentação forçada. Esta empresa aproveita o período de Inverno, em que as aves comem mais, para lhes proporcionar a melhor alimentação e para as engordar. Contudo, o fígado não cresce tanto como o dos animais forçados a comer e algumas empresas francesas contestaram que este produto possa receber a designação de foie gras.
O fígado faz a gestão dos nutrientes dos alimentos, eliminando alguns e enviando outros para diversos locais do organismo. Um desses nutrientes é a gordura, que se vai acumulando no fígado sob a forma de gotículas, as responsáveis pela inigualável textura cremosa e rica do foie gras. Como a sua maior parte é insaturada, essas gorduras não são nocivas para a saúde.
Ao longo da história
Que saia das entranhas dos bichos, não conheço nada melhor do que o foie gras. Durante muito tempo considerado um produto quase mítico que ombreava com as trufas e o caviar, tornou-se recentemente mais acessível, sem contudo ter perdido o prestígio. A origem da sua fama remonta a civilizações muito antigas, onde o fígado tinha valor simbólico, sendo usado na adivinhação. Os Egípcios já apreciavam esta iguaria: no museu do Louvre podem ver-se pinturas retiradas de uma câmara funerária de Saqqara em que está detalhadamente retratado um processo de gavage de patos e gansos muito semelhante ao que ainda hoje se usa. Os Gregos mandavam-na vir do Egipto. Arquéstrato, cozinheiro ou poeta do século IV a.C. e autor de um livro de gastronomia em hexâmetros, refere-se-lhe como «o fígado, ou melhor, a alma do ganso».
Os Romanos, sempre à procura do exótico, serviam foie gras nos seus famosos banquetes. Os gansos já vinham da Gália, mas nessa altura vivos e pelo seu pé. As aves eram alimentadas com figos, ecoando a clássica combinação do foie gras com os sabores doces. Em seguida, os fígados eram demolhados em leite e mel e inchavam ainda mais.
O fígado de ganso e de pato foi sempre muito popular em França. No século XVI, os judeus da Boémia eram os grandes técnicos do gavage, tradição que os Hebreus tinham aprendido com os Egípcios e que haviam trazido nas diversas diásporas. Devido às proibições religiosas, usavam as gorduras de pato como substituto da banha de porco.
Em França, as duas principais regiões produtoras de foie gras são o Sudoeste (Toulouse, Périgord) e a Alsácia (Estrasburgo). Como também é famosa pelas suas trufas, a região do Périgord juntou estas duas iguarias no famoso «paté aux truffes», que originalmente parece ter sido confeccionado com perdizes e ao qual já no século XVI se encontram referências. No século XVIII, há escritos que apontam Toulouse como um dos principais centros de produção de pâté. É no fim deste mesmo século que o marechal de Contades, governador da Alsácia, homenageia o rei Luís XVI com um pâté de foie gras em crosta de massa criado pelo seu cozinheiro, Jean-Pierre Clause. O soberano fica de tal forma maravilhado que oferece uma terra na Picardia a Contades e 20 moedas de ouro a Clause, que abre um negócio de foie gras e acaba por enriquecer.
No século XIX, algumas feiras, nomeadamente as de Périgueux e de Sarlat, no Périgord (Sudoeste), ficaram famosas devido ao foie gras. Entre o foie gras desta região e o da Alsácia há algumas diferenças, resultantes sobretudo do modo como é confeccionado. O alsaciano é bem condimentado e levemente acinzentado enquanto o do Sudoeste é mais rosado e tem sabor adocicado e a frutos secos (a cor está ligada ao pigmento do milho com que as aves são alimentadas).
Nestas regiões onde se criavam os patos e os gansos, cultivava-se o milho, trazido das Américas. Hoje em dia, com o aumento do seu consumo, o foie gras passou a ser também produzido noutras regiões, como, por exemplo, na Bretanha. Em alguns locais, a qualidade deste produto tornou-se inferior, devido à industrialização e ao uso de hormonas e antibióticos nos animais. A popularização do consumo de foie gras em França levou à necessidade de o importar, sobretudo de Israel e da Hungria. Nos EUA, a proibição de importação de fígados crus esteve na origem do grande desenvolvimento da produção local de foie gras de pato a partir dos anos 90.
Pato ou ganso? Ambos têm os seus defensores: do foie gras de pato gosta-se do sabor levemente amargo e da textura mais rústica; do de ganso, aprecia-se o travo mais subtil. Um bom fois gras fresco de pato pesa entre 500 g e 600 g; o de ganso, pode chegar ao dobro.
Pequeno glossário
Em 1994, a França regulamentou e simplificou as denominações do foie gras: esta designação indica produtos feitos exclusivamente com fígados de ganso ou de pato e eventuais temperos, também regulamentados. Os outros preparados à base de fígado, como os populares pâtés, não podem usar esta denominação.
Foie gras inteiro
Pode ser constituído pelos dois lobos do fígado ou apenas por um. O foie gras inteiro é comercializado fresco, congelado ou com uma leve cozedura (neste caso, costuma levar sal, pimenta e Armagnac). É muito usado nos restaurantes, em preparações quentes; por vezes, é fatiado em escalopes finos e salteado em lume brando, eventualmente com umas gotas de óleo de noz, que reforça o sabor a frutos secos. Se resolver aventurar-se a cozinhar o foie gras fresco, não chore sobre os euros derrramados em gordura que se vão escapando para a frigideira. Concentre-se no prazer voluptuoso que lhe darão os aromas reforçados pelo calor e a incomparável textura sedosa.
Foie gras
Composto por pedaços dos lobos aglomerados, provenientes ou não do mesmo fígado, apresenta aspecto marmoreado.
Bloco (bloc) de foie gras
É obtido pela compressão de pedaços grandes de fígado, que form uma espécie de cilindro achatado, sendo seguidamente cozido; contém obrigatoriamente 98% de foie gras (os outros 2% são para temperos).
Parfait, pâté, galantine e mousse
O parfait é constituído por pequenos pedaços de fígado esmagados. Contém, no mínimo, 75% de foie gras ligado com fígados de outras aves. As mousses, as galantines e os pâtés contêm, no mínimo, 50% de fígado de pato ou de ganso, podendo o resto ser proveniente de outros animais. No caso das mousses, o foie gras é marinado, cozido e a sua gordura batida.
Fresco, mi-cuit ou em conserva
O foie gras inteiro fresco (cru) é um produto sazonal, disponível no Inverno, perto do Natal. Para escolher um bom foie gras fresco, faça uma ligeira pressão com o dedo polegar: o fígado deve ficar com uma marca que irá progressivamente desaparecer; se for seco, tem um toque húmido e textura elástica e rija. Devido às modernas técnicas, o foie gras congelado não perde qualidades. O foie grasmi-cuit é cozido a uma temperatura entre os 75ºC e os 80ºC (pasteurizado), mas sem perder os aromas e a frescura, de forma a conservar-se durante algumas semanas no frigorífico. O foie gras de conservaé cozido a uma temperatura acima dos 100ºC e tem um maior prazo de vida.
Porque eles são bons companheiros
Em relação ao modo de servir e às combinações do foie gras, o chef João Antunes aconselha: « Retire o foie gras do frigorífico uma hora antes de servir. Se usar um bloc, passe o recipiente por água quente, para o desenformar melhor. Faça o mesmo com a faca que vai usar, mesmo para cortar o fresco. Evite os sabores muito intensos ou muito acidulados, como o do vinagre ou da mostarda. Procure o equilíbrio, para que o sabor do foie gras e o da guarnição não se choquem. Para acompanhar o foie gras salteado, use rúcula com coulis de manga, ruibarbo confitado e molho de porto ou cebola-roxa com manga e moscatel. No caso de o foie ser escalfado, o seu sabor será mais subtil e não irá tolerar doçura nem acidez muito acentuadas. Um acompanhmento mais leve, como uns minilegumes estufados, será certamente uma aposta mais acertada. Se optar por uma salada, pode juntar um pingo de mel à vinagreta. Os acompanhamentos mais clássicos são a trufa (o grande luxo é servi-la com uma inteira), compotas de frutas secas, de figo ou de cerejas. A maçã riposta ao foie gras com acidez q.b e o doce ajuda a cortar a gordura do foie. Abóbora, alho-francês, vieiras e ostras são acompanhamentos mais modernos, assim como um gelado de fruta da época, num jogo de quente e frio. Uma terrina fria pode ser combinada com uma compota ou uma geleia alcoólica. Acima de tudo, deixe-se guiar pelo seu gosto.»
E o pão? Indubitavelmente. Qual? A opção clássica são as fatias finas de brioche, de pão de mistura fresco ou de baguette rústica. Experimente pães menos tradicionais, como o de nozes. Qualquer tipo de pão deve ser torrado, mas não em demasia, para que não se sobreponha à textura do foie gras. Para os pâtés, faça tostas Melba caseiras.
Para beber? A resposta clássica é nada de vinhos demasiado leves, ácidos ou jovens. A escolha tradicional é um Sauternes, um vinho branco licoroso da região de Bordéus. Este vinho é fruto da contaminação das uvas com um fungo que provoca a perda de água e a concentração dos açúcares. O tipo de vinho varia conforme o foie gras seja servido no início ou no meio da refeição, quente ou frio. Convém usar o mesmo vinho como aperitivo, para evitar choques de sabores. Em caso de dúvida, opte pelo champanhe.
Fotos Nuno Correia