O BUCHO DA FREINEDA
Estou no comboio da linha das Beiras a caminho da Guarda (como sempre não há wfi nem fichas para carreegar os equipamentos, pelo menos há comboio; não há é bar porque os funcionários estão de greve) para participar no 16ª Festa do Bucho e Outros Sabores, na Freineda, perto da Guarda. A iniciativa é promovida pela Associação D.S.C. Freinedense juntamente com a Junta de Freguesia de Freineda, com o intuito de promover a gastronomia regional.
Segundo a organização, “esta iniciativa tem vindo a obter cada vez maior dimensão atraindo à Freineda, ao concelho de Almeida e ao distrito da Guarda centenas de visitantes vindos de vários pontos de Portugal e Espanha”.
Cada vez me apercebo mais que a região das Beiras está desvalorizada aos olhos do público em geral em termos gastronómicos, é tão rica em tesouros gastronómicos, como é o caso do bucho da região raiana do Sabugal e da Guarda, que considero superior ao butelo transmontano. Houve recentemente um grande esforço na divulgação do butelo, mas esta conduziu à comercialização de peças mal curadas e mal confecionadas. Desta forma, divulgava-se um produto inferior (ainda que artesanal) com efeito nocivo.
O bucho das Beiras também é primo de outros butielos do lado de lá da fronteira, todos eles exemplos do aproveitamento total do porquinho.
O bucho é feito a partir do estômago, palaio (intestino grosso) ou bexiga do reco (bem lavados e esfregados com casca de laranja), e recheado com as sobras dos enchidos nobres, sobretudo da cabeça, sendo bem visível a orelha. Todos os pedacinhos de carne que ficaram agarrados aos ossos, à cabeça, à costelas, ao rabo, etc. são temperados em vinha d’alhos com colorau, que não deve ser excessivo, embora a tendência seja para o excesso. O que estraga muitas vezes os enchidos é a teimosia em continuar a confecioná-los como soía fazer-se há muitos anos, quando o seu propósito era a conservação de carnes que de outra forma apodreceriam. Precisamos de nos lembrar de que o propósito dos enchidos atualmente é o prazer para o palato, pelo que devemos esquecer demasiados temperos, nomeadamente sal e colorau, e demasiada fumagem. Fumagens abruptas, com lumes muito fortes, conduzem a maus enchidos, com o exterior enegrecido e o interior mal curado.
Costumam comer-se no Carnaval, O Entrudo, em especial no Domingo Gordo, hoje, são um prato para todo o Inverno que se tornou um ícone nas regiões onde são confecionados artesanalmente.
No dia em que se enchem os buchos, é costume fazer a “prova”. Enquanto se trabalha, vão-se fritando numa frigideira ou assando nas brasas da lareira pequenas porções das carnes já temperadas. Estas carnes de alguidar são sempre cheias de sabor e consolam quem as come.
Os buchos têm outra particularidade: são cozidos no interior de pequenos sacos de pano branco (tradicionalmente de linho) ou bem envolvidos em panos, para que não se desmanchem. A fervura deve ser muito branda e o tempo de cozedura dilatado (cerca de 3 horas). O clássico acompanhamento são os grelos de nabo(por serem da estação) e as batatas cozidas. Usa-se também acompanhá-lo com outros enchidos. Porém, não é nenhum crime de lesa-pátria comerem-se com outros acompanhamentos. Fala-se por vezes da heresia que é acompanhar as alheiras com batatas fritas e ovo estrelado. No meu entender, cada um acompanha com o que quiser e gostar. Já ouvi este tipo de observações da boca de chefs que desconstroem os produtos e as receitas tradicionais como bem lhes apetece, mas que se enchem de pruridos perante a coexistência de uma alheira e de uma batata frita. São estas regras rígidas, que frequentemente provêm apenas da coexistência dos produtos na mesma escala temporal, que podem acabar por matar os próprios produtos que queremos preservar.
Outra especialidade que se faz com o bucho é a sopa. Mas lembre-se de que o bucho pode servir de recheio a uma boa sanduíche (é uma verdadeira delícia), aos croquetes, empadas ou outros pastéis. Ou nuns tacos e burritos. O céu é o limite quando falamos de bucho.