Nadar em cardume com sangue na guelra
Quando o jantar acabou, já não me lembrava que eles tinham sido apresentados como os braços direitos, os segundos, de três conhecidos chefes. Quando me levantei da mesa, apenas me lembrava que tinha comido uma refeição original, equilibrada e com pratos muito interessantes pelo caminho.
O lingueirão minimalista de David de Jesus abriu a refeição
Os responsáveis já não são garotos, embora tenham sangue na guelra: David de Jesus (Belcanto), Matteo Ferrantino (Vila Joya), Yoji Tokuyoshi (Osteria Francescana) foram os criadores de três pratos cada um, suficientes para tornar visível a sua identidade apenas com esta trilogias. O jantar, todo em pratos de peixe e marisco devido à parceria com o Peixe em Lisboa, mostrou-se um discurso com lógica do princípio ao fim e revelou muito trabalho de bastidores entre os três, para o qual também contribuiu a boa harmonização com os vinhos da José Maria da Fonseca. A ideia genial ficou a dever-se à parceria Ana Músico/Paulo Barata, a quem dou os meus parabéns pela iniciativa e pela maneira suave, mas eficaz, como se posicionam no mundo da gastronomia.
Para começar, tivemos um brinde do Pedro Bastos, da renomada empresa de comercialização de pescado Nutrifresco, que com o seu imenso saber e facilidade em comunicar nos deu uma boa lição sobre o tema.
Não vou alongar-me muito sobre os pratos. Em meia dúzia de linhas vou dizer qual foi o meu Top 3 e porquê.
Em termos de surpresa e de estética, gostei muito do “Salada do mar”, do japonês Yoji Tokuyoshi. Baseado num trompe le goût, os legumes da salada tinham belíssimas formas de peixes e marisco (recortadas com formas metálicas que foram mostradas à mesa), a lembrar os finíssimos recortes de papel chineses. As maioneses de diversas cores, essas eram feitas de peixe e marisco triturados e com um incrível sabor a mar.
Salada do mar de Yoji Tokuyoshi (Osteria Francescana)
Em termos de sabor e combinação harmoniosa de vários ingredientes, gostei muito do “Lírio, couve-flor e caviar” pela grande e harmónica diversidade de sabores (desde o pudinzinho de chá verde com wasabi até às diferentes lâminas de couve-flor, passando por esse magnífico peixe capturado nos Açores, o lírio, e pelo caviar). O seu criador foi Matteo Ferrantino.
Lírio, couve-flor e caviar de Matteo Ferrantini (Vila Joya)
David de Jesus apresentou “Navalheira azul com creme de caril” que eu elejo pelo equilíbrio justo, sem que o caril se sobrepusesse ao caranguejo, antes lhe soubesse ir buscar todas as suas nuances. E pelo facto de David ter ido buscar as suas raízes de uma forma tão bem conseguida. E talvez também porque essas raízes também fizeram parte do meu crescimento sempre partilhado com primos goeses.
David de Jesus termina o seu prato "Navalheira Azul com creme de caril"
Bom há um quarto prato, um que não veio ao encontro do meu gosto mas que me fez pensar. Chamava-se “Chá verde com peixe fumado” e consistiu basicamente num molhinho de legumes e frutos crus, todos verdes, sobre os quais Tokuyoshi verteu à mesa um caldo salgado que supostamente amoleceria as ditas crudités, cujo sabor profundamente amargo em nada beneficiou com a infusão. Forcei-me a comer este prato, que contrariava a cada colherada as minhas papilas gustativas, dizendo para mim mesma: “Será que devemos insistir em comer aquilo que não gostamos para educarmos o palato, tal como me aconteceu com a leitura do Moby Dick, de Herman Melville? Será que faz bem e educa o nosso sentido do gosto? Bom, eu diria que este quarto prato foi encarado como o prato educativo, o meu Moby Dick. Posso garantir-vos que ficou profundamente marcado na minha memória gustativa.
Eu e o “Chá verde com peixe fumado”. Yoji Tokuyoshi verte o caldo sobre os legumes crus numa malga recoberta de essência de clorofila
Porém, deixei para o fim aquilo que verdadeiramente me impressionou: o sentido de colaboração e de entreajuda que se assistiu na cozinha entre três homens que não trabalham juntos e que mal ou não se conheciam. Vi-os juntos a acabarem os pratos uns dos outros, a trocarem impressões, a darem o litro, a beberam uma cervejola e a darem risadas em língua nenhuma enquanto descontraíam. E que belo exemplo de como se deve trabalhar em colectivo deram aos alunos da Escola Hoteleira de Lisboa, que na cozinha e na sala fizeram o apoio ao evento.
O trabalho do pessoal de mesa (o expressivo Enrico Vignoli, da Osteria, e o eficaz e cortês Paulo Luz, do Vila Joya, por exemplo) também foi notável, enquadrando os alunos da escola. O ritmo esteve bom e descontraído, mas sempre profissional, apesar de a refeição de 11 pratos ter sido demasiado longa.
Paulo Luz com Matteo Ferrantini
Uma palavra final para as levíssimas e lindíssimas sobremesas inspiradas no mar de Christina Shaffenacker, do restaurante Ocean: deslumbrantes em tons de laranja.
Christina Schaffenacker, pasteleira do Ocean, Vila Vita
A maioria das fotos foram tiradas pelo Miguel Andrade, que esteve sempre atento à cozinha. Obrigada Miguel.