AS ESTRELAS MICHELIN: QUE LAS HAY, LAS HAY
A propósito da saída do guia Michelin 2014 Espanha e Portugal, os meus parabéns a todos os que mantiveram as suas estrelas e muito especialmente para a primeira estrela de Miguel Laffan, um chef com uma cozinha segura e surpreendente, com grande mestria no uso dos legumes. Os meus parabéns também ao Joachim Koerper que recupera a estrela para o Eleven, sem esquecer o chef Edgar Rocha, sempre presente. Ao Leonel Pereira, do São Gabriel, um até para o ano.
Classificar: o supremo poder do guia Michelin
No Figaro Littéraire de 5 de Maio de 1969, James de Coquet conta uma história do famoso príncipe dos gastrónomos, Curnonski que, em 1907, baptizou com o nome de Bibendum o boneco dos pneus Michelin. Numa crítica que fez a um restaurante de Bordéus classificado no guia Michelin, Curnonski afirmava: «É uma boa casa. Contudo vou fazer-lhe três reparos: o primeiro é que o serviço é feito por mulheres e as saias rodadas deslocam muito ar em redor dos comensais, o segundo é que após terem aberto a minha garrafa de Château Pavie, não cheiraram a rolha para se assegurarem de que estava nas melhores condições. Enfim, o terceiro, mas não o menos grave, é que ninguém me reconheceu naquela casa.»
Embora os inspectores do Michelin entrem incógnitos nos restaurantes e, em matéria de estrelas, a cozinha seja muito importante, há pormenores que as podem dar ou tirar. E as estrelas chegam a tirar vidas. Em 1966, Alain Zinck suicida-se porque lhe foi retirada uma das duas estrelas Michelin do seu restaurante de Paris. Em 2003, parece ter sido uma perspectiva de despromoção no guia GaultMillau que terá conduzido o genial Bernard Loiseau ao suicídio. Este discípulo de Troisgros, proprietário do La Côte d’Or, na Borgonha, e com uma empresa cotada em Bolsa, não terá aguentado a pressão.
Mas como é possível que estas listas de classificação se tornem tão poderosas? Vejamos um pouco da sua história.
O primeiro antecessor do Michelin é um almanaque do século XVIII em que Mathurin Roze, restaurador de profissão, faz listas de várias profissões: grossistas, banqueiros, artesãos e também de casas de pasto, estalagens e restaurantes. Estes eram um conceito recente. Um dos primeiros surgira em França no ano de 1769, justamente pela mão do próprio Roze, que aproveitou para o publicitar no dito almanaque. A mesma filosofia serviu de base ao Almanaque Gourmand de Grimod de la Reynière, editado em 1803. Este gastrónomo francês organizou um júri composto por diversos amigos, que todos os anos revia as classificações.
O Guia do Pneu Michelin é criado em 1900 pelos irmãos Michelin, André e Edouard, como forma de promover a faceta excursionista do automóvel, sendo oferecido na compra de pneus desta marca. Era uma espécie do actual calendário da Pirelli, pendurado pelos mecânicos nas paredes mais óbvias das oficinas, embora nestes as curvas não sejam propriamente as da estrada. Além da lista de hotéis, nele se podiam também encontrar outras informações úteis, como uma lista de garagens (raras na época) ou os preços da gasolina (sem alterações ao longo de todo o ano!). É também editada uma versão de luxo em papel especial, com metade do peso e do volume e ao preço de 1 franco. A partir de 1920, a versão base começou também a ser paga.
Em 1923, passam a figurar informações sobre restaurantes, em geral fornecidas por clientes, garagistas e revendedores de pneus e pelos primeiros inspectores anónimos. Em 1926, nasce a estrela, ou macaron, para classificar os bons restaurantes. Três anos depois, são incluídos questionários, que ainda hoje existem, para que os leitores possam dar a sua opinião. Em 1931, a classificação alarga-se a duas e a três estrelas e a capa passa de azul a vermelha. Uma estrela indica «um bom restaurante na sua categoria, um bom local para parar em viagem, com especialidades e vinhos de qualidade»; duas estrelas, «uma excelente cozinha que merece um desvio»; e três estrelas, «uma cozinha soberba e vinhos excepcionais, em restaurantes que merecem uma viagem». Os critérios para obtenção das cobiçadas estrelas são a escolha dos produtos, o domínio dos pontos de cozedura e dos sabores, a personalidade patente no prato e sobretudo a regularidade. Paul Bocuse é o mais antigo chefe com três estrelas, atribuídas em 1965 e nunca retiradas.
O guia não se publicou entre 1915 e 1918, em 1921 e entre 1940 e 1944. Curiosamente, o de 1939 foi fornecido aos soldados pelo governo dos EUA aquando do desembarque na Europa, devido ao rigor dos mapas das cidades. O guia de 1945 é um documento histórico que nos mostra uma França destruída pela guerra, mas ansiosa por esquecer e voltar a viver.
O Bib Gourmand (abreviatura de Bibendum), um guia dos restaurantes em função da relação preço/qualidade é criado em 1997, seguido, em 2003, pelo Bib Hotel, o equivalente para a hotelaria.
Desde 1910 que se publica um guia Michelin Espanha e Portugal. O último a estrear-se foi o de Tóquio, em 2008. Pelo caminho, surgiram guias de diversos países da Europa e, em 2005, o de Nova Iorque. Em Espanha, houve desde sempre reacções negativas em relação a este guia. Xavier Domingo não podia ser mais claro na sua crónica Cocina e Vinos da revista Cambio 16, de 24 de Junho de 1985: «Há que designar como modelo de chauvinismo e de ignorância a Michelin francesa nos seus guias de países que não sejam a França [...].» Em 1986, a Espanha ainda não tinha nenhum três estrelas.
Cá pelas nossas bandas, José Quitério chama-lhe «um guia gagá» na rubrica à Mesa, do Expresso, de 16 de Junho de 1989 e explica: «É difícil, a partir do estrangeiro, julgar e criticar a restauração de outros lugares. Acresce, no caso dos franceses, o seu indesmentível chauvinismo e convencimento de que a única cozinha boa é a deles. Embora esteja em letra de forma que “tivemos em conta os hábitos culinários próprios do País e de cada região”, o certo é que por desconhecimento ou falta de meios cometem erros e injustiças sem conta.» Nesse ano, foi atribuída uma estrela aos seguintes restaurantes portugueses: Tágide, Casa da Comida e Conventual (em Lisboa) e Porto de Santa Maria (em Cascais). Na mesma crónica, mas a 25 de Junho de 1990, José Quitério baptiza o livrinho vermelho com o expressivo nome de Miquelino.
Na edição de 2008, o mapa da restauração em Portugal mudara: duas estrelas para o Vila Joya e uma estrela para Amadeus, Henrique Leis, São Gabriel, Willie's (todos no Algarve), Eleven (Lisboa), Fortaleza do Guincho, Porto de Santa Maria (Cascais, Guincho) e Quinta das Lágrimas (Coimbra).
GaultMillau, “o amarelo” alternativo
Baptizado com o nome dos seus dois fundadores, Henri Gault e Christian Millau, críticos gastronómicos que promoveram a Nouvelle Cuisine nos fins da década de 60, é considerado um guia mais irreverente. Nascido em 1969, este Nouveau Guide traz o Maio de 68 para a cozinha e proclama que o livro vermelho não passa de um bastião do conservadorismo que desdenha uma jovem geração de chefes franceses. O seu sistema de classificação traduz-se em pontos, num máximo de 20. Esta clivagem mantém-se até hoje, sendo o Michelin considerado mais conservador e o GaultMillau mais rebelde. O livro vermelho é acusado de nunca ter descoberto novos valores, limitando-se a reconhecer os chefes cuja genialidade está já estabelecida.
Em 1973, Gault e Millau lançam os 1Dez Mandamentos da Nouvelle Cuisine e pedem aos cozinheiros que continuem a inovar e a tornem mais leve. Marc Veyrat foi o único chefe a obter nota máxima no GaultMillau – 20/20, para os seus dois restaurantes, corria o ano de 2004.
Outra diferença entre os dois guias reside na maior importância atribuída aos textos no GaultMillau. Na sua esteira, surgem diversos guias regionais e locais, «verdadeiros manuais de sociologia», como os designa Jean-François Revel na revista Le Point de 30 de Novembro de 1996: «Não somente se descreve o estilo culinário da casa, mas também o da decoração e do mobiliário, a personalidade do patrão e o temperamento do chef, sobretudo se forem um só, o charme da patroa, o género de público.» No ano 2000, o Michelin não resiste a esta tendência e passa igualmente a incluir textos descritivos.
Zagat, o democrático
A pretexto de algumas discordâncias dos seus amigos em relação à coluna gastronómica do New York Times, o nova-iorquino Tom Zagat resolve criar um guia completamente diferente para os EUA. Em vez de ser elaborado por críticos é construído pelo público e baseia-se na força da estatística: a média de milhares de opiniões será certamente mais rigorosa do que a opinião de uma única, ainda que especializada. São os próprios clientes que classificam a comida, a decoração, o ambiente, o serviço e os preços dos restaurantes. O primeiro Zagat, o de Manhattan, foi publicado em 1980. Os últimos dois, de 2008, são o de Beijing e o de Hong Kong, Xangai e Beijing.
Está lá fora o inspector
Os inspectores do guia Michelin visitam os restaurantes sempre anónimos e só se dão a conhecer no fim da refeição, caso esteja prevista uma visita às cozinhas. Nos casos dos duas ou três estrelas, são feitas três ou mais inspecções aos restaurantes, por diferentes pessoas. Quantos são os inspectores? Não tantos como poderíamos ser levados a pensar. A sua selecção é rigorosa e têm, em geral, alguma formação turística ou hoteleira. Trabalham incansavelmente, chegando a visitar duzentos restaurantes por ano. Em 2004, Pascal Rémy, um desses inspectores, escreveu um livro “L’inspecteur se met à table”, onde denuncia o escasso número de visitas anuais aos restaurantes, acrescentando que alguns deles são intocáveis. Rémy foi despedido, pôs uma acção em tribunal contra a Michelin e perdeu.
Como curiosidade, ficam duas citações de artigos de jornais nacionais a propósito de inspectores e guias turísticos. A primeira é uma descrição dos inspectores do Michelin traçada por Alfredo de Morais (filho do célebre Faustino dos bifes) em 20 de Outubro de 1956, em O Cronista: « [...] existem nessas organizações inspectores [...] cujas atribuições são as de classificar durante o ano a evolução observada nos serviços de cada casa, para ser publicado no Guia do ano seguinte o resultado das suas observações, escudadas na autoridade incontestável de quem não se subordina a uma amabilidade que o torne dependente, que não se deixa subornar com mais uma guarnição na sua escalope ou qualquer outra melhoria no serviço, não se sujeitando a subserviências, pois que se instala nos hotéis e pousadas incognitamente e nos restaurantes confunde-se com o público anónimo».
A segunda é de Manuel Pedroso (pseudónimo de Luís de Sttau Monteiro) que, no suplemento “A Mosca” de 15 de Dezembro de 1973 (Diário de Lisboa), comenta a relação da nossa gastronomia com os guias turísticos: «A edição do Guide Bleu de 1973 tem um capítulo dedicado à gastronomia portuguesa e é desse capítulo que extraímos as seguintes frases: “O gastrónomo que anda à procura de pratos inéditos ficará um pouco decepcionado não encontrando na lista senão um reduzidíssimo número de pratos nacionais...”.» A propósito das críticas deste guia, que classifica a nossa cozinha de «sã e robusta, mas sem o requinte da cozinha francesa e sem qualidade dos produtos», Manuel Pedroso remata desta forma o seu artigo: «Infelizmente vai haver quem, ao tomar conhecimento do que o Guide Bleu diz da nossa cozinha, pense que ele está a soldo duma potência num complot contra nós... Pois a quem pense assim, os nossos desejos dum bom bife com batatas mal fritas e dum bom pudim flan com uma ginja na extremidade.»