A COMIDA NA ARTE 2
Em seguimento ao post anterior sobre a Comida na Arte, deixo-vos aqui, e ao longo da tecla, alguns exemplos curiosos que mais me marcaram ao longo da vida sobre a intrusão da comida na arte. Quem me está a ler terá provavelmente outros completamente diferentes.
O primeiro caso de que me recordo tem a ver com alimentação já na fase de putrefacção: fezes. Não me esquece uma das primeiras instalações que vi no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em que a estrela eram pratos tipo Bordallo Pinheiro, pendurados nas paredes, mas em vez das lagostas e das chouriças estavam cheios de birirotos com as mais diversas formas e tamanhos. Remete-nos poderosamente para o papel do tempo na transformação de tudo. Não me lembro de todo de quem era o artista.
Três quadros de Adriana Varejão
Outro momento alto neste tema foi no Museu de Arte Contemporânea de S. Paulo e tratou-se de uma exposição de pintura de Adriana Varejão. Os quadros mostram a realidade geometricamente alinhada dos azulejos portugueses da qual irrompe a carne de um corpo dilacerado. Esse corpo não será individual, mas sim social, e deixa passar a sensação de profundo sofrimento. Segundo a artista, esta carne é a do tecido social índio antes da colonização pelos portugueses. Os azulejos representam a portugalidade que à superfície parece sem mácula. A minha primeira impressão foi justamente da irrupção do nosso eu visceral numa realidade que o quer esconder.
Três momentos da instalação de Dieter Roth
O coelhinho de palha e fezes do mesmo
Um outro caso, é o do artista Dieter Roth, nascido em 1930 na Alemanha de mãe alemã e pai suíço. Dada o seu país de origem, Roth escolheu o queijo para fazer instalações e quadros. A filosofia subjacente é que todo o produto é um processo, afirmação que faz todo o sentido na cozinha. Em 1970, fez uma célebre instalação numa galeria de Los Angeles: 37 malas de viagem cheias com queijo foram distribuºidas pela galeria. Mas fez mais: esparramou vários queijos de pasta mole nas paredes. O título da exposição em inglês era Staple Cheese (a Race), um trocadilho com Steeple Chase que significa uma corrida de obstáculo para cavalos. Com o passar do tempo (um dia foi suficiente), os queijos das paredes foram escorregando e todos foram apodrecendo, lançando um cheiro pestilento na galeria e enchendo-a de moscas e vermes, os seus verdadeiros aficionados segundo o artista. Roth gostava de trabalhar com estes materiais altamente sujeitos a decomposição e mutação. Uma outra obra sua foi o coelhinho que parecia um chocolate da Páscoa, mas cuja cor castanha afinal não era do chocolate mas resultava da mistura de palha e de cocó cunicular. Nem sempre estas surpresas tão ao gosto da cozinha molecular são boas surpresas...
Roth também trabalhou com massa de pão, um produto que é verdadeiramente um processo, mas um outro artista elevou o pão a outro nível.
Três kopfflusslers de Genzel. Outras figuras existem em madeira bem mais explícitas.
Foi o alemão Karl Genzel, talvez de todos estes o meu preferido porque partilhamos um gosto comum, de muito mau gosto: usar o miolo de pão. Mas enquanto eu apenas faço bolinhas (hábito sinistro que herdei da minha mãe), Genzel fazia figuras com conotações sexuais, muitas vezes com os dois sexos, e de miolo de pão já mastigado (nunca tive essa ousadia), tudo isto no princípio do século XX. Dada a perecibilidade do material, estas figuras em pé, de nome kopfflusslers, não sobreviveram, mas as posteriores feitas em madeira, sim. Karl Genzel aprece ter sido esquizofrénico, e, em determinada dilacerada altura da sua vida, pretendia ser Jesus Cristo.