A INOCENTE LULA DO FEITORIA
Matéria é o nome dos vários menus de degustação do Feitoria, o restaurante do hotel Altis Belém. O chef João Rodrigues quis privilegiar o vulgarmente chamado produto na sua cozinha, porque a boa cozinha supõe sempre um bom produto. E para homenagear essa matéria, traz à mesa os produtos base de cada prato, para que o cliente possa ter contacto directo com eles, vê-los, sentir os seus aromas e perceber a importância da sua frescura e da qualidade no resultado final que é lhe é apresentado.
Se os franceses foram os pais deste destaque dado ao bom produto, os americanos levaram esse destaque às últimas consequências e, mais recentemente, os nórdicos transformaram-nos numa religião. Diz-se que em Portugal temos uma cornucópia de abundância de bons produtos. Nem sempre é real. Temos tesouros no mar, mas a sua maioria foge para a exportação. Temos algumas boas raças autóctones de carne, mas os exemplares são tão escassos que para poucas encomendas chegam. Temos saborosos porcos de raça alentejana, que vão para Espanha para se transformarem em presuntos. A nossa fruta e legumes podem ser belíssimos, mas os mais saborosos raramente chegam à distribuição. Infelizmente, a maioria dos nossos consumidores não consegue pagar a diferença de preço do produto standard para o bom produto. Os restaurantes de topo, como o Feitoria, estão a fazer um bom trabalho com os melhores pequenos produtores no sentido de, numa relação bilateral, permitirem a sua sustentabilidade. Para isso, há que adaptar muitas vezes as cartas aos melhores produtos disponíveis, em vez da tarefa mais fácil de elaborar a carta e, em seguida, procurar os produtos que a sustentam.
Indubitavelmente, João Rodrigues tem feito um belíssimo trabalho de campo por todo o país para encontrar e estimular esses pequenos produtores. Indubitavelmente, o produto que chega à mesa do Feitoria é exemplar. Mas confesso que também muito me agradou no jantar que fiz recentemente no Feitoria a maneira inovadora com que o chef me conseguiu surpreender em cada prato, sem nunca desvirtuar a Matéria. Apenas com uma pequena alteração das nossas referências habituais, consegue tirar-nos completamente o chão das nossas convicções e transformar uma simples lula numa experiência que nos abala.
A dita lula chega-nos sozinha no prato, com um aspecto completamente inocente. Porém, à prova, apresenta o seu natural sabor adocicado, sem qualuqer tempero de sal, e uma textura tão macia que se pode comer com a colher que a acompanha. O sal, esse matreiro, está na manteiga de ovelha que rodeia o cefalópode. O mesmo se passa com o imperador com arroz de bivalves, sendo o principal elemento salgado do prato a salicórnia: tanto o peixe como os bivalves têm apenas o seu sal natural. Com estas novas referências somos levados a apreciar o sabor natural dos produtos. De um só golpe, João Rodrigues baralha-nos as referências, surpreendendo-nos e mostra-nos os produtos de excelência com o sabor com que vieram ao mundo.
Gostei também do uso da prensa do pato (famosa presse à canard do Tour d’Argent) para extrair a essência das cabeças dos carabineiros, reforçando o seu sabor. (A propósito, nunca tente extrair sabor das cabeças dos camarões congelados, e nunca o faça com um liquidificador).
Aperitivo de groselha e flor de sabugueiro (recordou-me os lanches de miúda, em que enchíamos o copo de groselha com água gelada de uma fonte)
O pão, muito simpaticamente servido
Enxaréu, Ammanita cesarea e azeite Monterosa
Tartelete de favas e papada de porco de raça alentejana (curado no restaurante). Um começo cheio de sabor.
A prensa usada para as cabeças de carabineiro.
O carabineiro já com a sua essência.
A matéria vem à mesa: imperador e bivalves.
E o respectivo prato.
Copita de Barrancos Portugal com caldo de cozido que quase se mastiga.
Lombo de arouquesa com cogumelos
Pistácio, alperce e gemada. Este não falou comigo...
Biscoito pão de ló com creme de limão e ananás, gelado de pimenta preta com toffee de noz moscada e ananás dos Açores fumado com calda de canela. Uma sobremesa fresca e complexa a que não faz jus a foto...O ananás é cortado á mesa e tem um sabor excepcional.
Foi uma refeição magnífica de equilíbrio, boa matéria e emoção. João Rodrigues consegue trazer-nos novos sabores com um mínimo de manipulação e alteração da matéria. Tranquilamente, João Rodrigues afirma-se como uma referência na nossa cozinha.
O restaurante tem uma vista muito repousante sobre o Tejo, uma agradável varanda e um serviço profissional e cortês. Só não gosto de ser servida com luvas pretas ( a haver luvas, serão sempre brancas na minha opinião).
Bebi este vinho com todos os pratos e foi uma óptim escolha aconselhada pelo escanção.
Menu matéria 6 pratos – 135 euros.
Restaurante Feitoria
Hotel Altis Belém
Doca do Bom Sucesso
1400-038 Lisboa
Tel: 210400200
Email: reservationsbelem@altishotels.com