A LUSOFONIA À MESA
Confesso que estava distraída e não me apercebi do fantástico trabalho que o Vasco Lello estava a fazer no café Colonial, isto já lá vai um ano, e apesar de ser sua fã. Ontem, finalmente, arrepiei caminho e visitei o seu restaurante, o Café Colonial. Pertence ao hotel Memmo, um pequeno cinco estrelas encravado na ponta da colina que cai sobre Lisboa nas traseiras da D. Pedro V, recentemente edificado num local onde parecia impossível alguém poder construir.
O restaurante tem óptimo ambiente, um agradável bar mixologista, e estava cheio de portugueses, complementados por 3 ou 4 mesas de clientes estrangeiros do hotel. Decoração interessante, cadeiras confortáveis, mesas de lindíssimos tampos em pedra, infelizmente sem qualquer panejamento. Carta não muito longa, mas abrangente. A para refeições informais.
Para o jantar, embarquei com o Vasco Lello numa viagem a quase todos os cantos do mundo por onde nós portugueses andámos. Foi um verdadeiro roteiro de lusofonia, que se deveria fazer mais à mesa e menos por acordos ortográficos. Ao longo da refeição, levou-me a fazer uma viagem de muitas emoções, que se foram acumulando até que, quando provei o calulu de peixe seco da minha terra, dei por mim com uma lágrima a querer escorrer cara abaixo.
A cozinha de Vasco Lello é complexa e espiritual. Complexa porque ele consegue colocar num prato um ror de produtos sem o complicar, sendo mestre no equilíbrio do seu resultado final, o que não é tarefa nada fácil. Espiritual, porque consegue chegar à essência das diversas origens apresentadas, sempre com o maior respeito pelas suas origens. Atualmente, habituados que estamos à (falsa) simplicidade dos três ingredientes no prato, não é tarefa fácil alguém conseguir conquistar-nos com um prato cheio de sabores, mas todos eles em paz e harmonia, ainda que possam ser contrastantes.
Porém, o que mais me agradou na cozinha do Vasco Lello foi a viagem ao tempo das nossas viagens, em que fizemos um constante leve e traz, de uma costa para a outra, de um continente para o outro. Fomos nós os primeiros a trazer o chocolate para África, o café para o Brasil e as malaguetas para a Índia.
Infelizmente, os nossos cozinheiros não se inspiram nestas nossas matrizes do passado (excepção seja feita a Bruno Rocha, mas de forma mais pontual), preferindo por vezes ir buscar raízes a origens que cultural e gastronomicamente nada nos dizem.
A partida para a refeição foi muito lisboeta, com laivos árabes nas frituras: uns croquetes de camarão e outros de rabo de boi, e umas ostras, tão típicas de Lisboa que se abriam nos braseiros a cada esquina. Vinham com notas orientais da soja, um casamento que não me agradou muito. Mas adorei o seu companheiro, um reconfortante caldo de ostra, que bebi até à última gota.
Em seguida, as duas jóias da coroa. O calulu de Angola e o caril de garoupa da Índia, mas a piscar o olho à Tailândia.
O calulu é um prato que se fazia com algumas diferenças em todas as nossas colónias. O nome provém do tupi caruru, que significa quiabo. Trazido de África para o Brasil ali voltou depois de enriquecido com a americana mandioca. O calulu do Vasco era estilizado: o peixe usado era a garoupa fresca, mas tinha a presença de vários pedaços de garoupa seca à moda africana, que enchiam o molho com o sabor do calulu angolano. O funji de fuba de mandioca e de milho angolanizava o prato. Estava verdadeiramente de vir às lágrimas, já que estas realmente assomaram aos meus olhos pela saudade que a alma deste calulu me trouxe. (foto do início)
A garoupa seca que é incoporada no molho.
A viagem continuou através de um magnífico caril, uma mistura criada no restaurante e que lembra um pouco o caril verde tailandês. A proteína era mais uma vez a garoupa e a carnuda gamba acompanhadas por mini quiabos, coco e paparis.
Dois pratos que não esquecerei.
Saborosíssimo, o pato com molho hoisin, legumes e ceveda perlada, a representar muito bem a carne.
A terminar, um gelado de chá verde e uma reconfortante queijada de mandioca, com aquela textura tão característica dos bolos de fubá brasileiros, a lembrar que a origem desta raiz é americana.
Uma viagem ao mundo da lusofonia em 80 minutos que vale a pena fazer. Para nós portugueses, uma forma de recordarmos que as nossas raízes estão espalhadas por todo o mundo e de darmos as boas vindas às dos nossos companheiros de viagem. Para os estrangeiros, uma montra dos produtos que poderiam fazer parte e enriquecer a nossa cozinha tradicional, mas dos quais parecemos arredados.Parabéns ao Vasco Lello por ter a visão de os recuperar e integrar na nossa cozinha.
Duas palavras finais. A primeira para a grande qualidade do serviço, discreto mas sempre presente, na medida certa e com a informação útil sem hesitações. A segunda, para a beleza e boa escolha da loiça, adequada esteticamente mas também funcionalmente.
Café Colonial
Tel: +351 961 844 248