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Conversas à Mesa

A NOVA ETIQUETA

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Quando eu era miúda, há um ror de anos, saber estar à mesa era de extrema importância. Havia muitas regras para interiorizar, e eram tantas que, durante a infância e adolescência, eu ainda não era admitida à mesa quando havia visitas de cerimónia.

Uma das minhas primeiras aprendizagens foi que só havia quatro coisas que se podiam comer à mão: pão, alcachofras, espargos e cerejas. (Não esqueço o primeiro programa de TV de Maria de Lourdes Modesto, que nos ensinou a comer as folhas de alcachofra à mão). Esta foi a regra que mais me custou a cumprir. Sempre gostei de comer com as mãos, de tirar directamente da travessa, sem passar pelo prato, sem as condicionantes de sabor impostas pelos talheres. Nada como comer à mão carnes agarradas aos ossos, chegar até às boas partes do entrecosto, sempre inalcançáveis para uma faca. A nossa relação com a comida é muito mais próxima, conseguimos sentir as texturas, a temperatura, para não falar no bónus de lamber os dedos.

Por outro lado, há um sentido reforçado de convivialidade relacionado com o facto de se comer da mesma travessa ou tigela.

Uma das memórias mais gratas que tenho são algumas refeições clandestinas da infância, partilhando funge e dendém. O funge tem o papel do arroz na Índia, servindo para ensopar ou aglomerar.

A maior parte dos códigos à refeição tem a ver com higiene, mas sobretudo com a atitude e o estatuto social que se pretendem transmitir através do nosso comportamento à mesa. Foram criações da burguesia, ansiosa por mapear território que lhe era desconhecido. Central permaneceu a ideia que não se comia por se ter fome. Consequentemente era proibido molhar o pão, comer a sopa até ao fim (era obrigatório deixar sempre o equivalente a duas ou três colheres de sopa no prato) ou soprar os alimentos quentes (sinal que não podíamos esperar que a comida arrefecesse, por estarmos famintos), evidências da indesejável e desclassificadora fome.

Porém, a relevância de todos estes códigos era a sua capacidade de separar socialmente os que os dominavam, e sabiam comer à mesa, daqueles que os ignoravam, por não terem acesso à sua aprendizagem. Quando se ascendia socialmente, era fulcral aprender a estar à mesa. Umas regras eram fáceis de adquirir, por exemplo a colocação do guardanapo no colo, mas a ordem e uso dos talheres amedrontavam muita gente.

 

Hoje, em restaurantes de topo, saber estar à mesa passou a ter mais a ver com a comida e menos com as relações entre comensais. O foco da refeição deslocou-se totalmente para a apreciação da comida, abafando a convivência. Se a cozinha molecular recuperou socialmente a felicidade de comer à mão, rompendo com certos códigos do passado, acabou por instituir outros bem rigorosos, como a ordem por que devemos comer os elementos do prato, quais os alimentos que devemos comer à mão e até a quantidade que devemos colocar na boca. Um menu de degustação não nos deixa dar atenção às pessoas ou à conversa, antes nos suga inexoravelmente para o que está no prato, requisitando-nos a nível emocional e intelectual.

 

 

Hoje, como a finalidade de estar à mesa é a «experiência gastronómica» e não o convívio social com os outros comensais. Novas regras emergem, nomeadamente as que dizem respeito ao uso de aparelhagem portátil, comunicante ou não. Discutem-se códigos para atender chamadas telefónicas e para fotografar comida, tuitar e zomatar, caso não estejam envolvidas actividades laborais em torno da mesa. A sua utilização não me parece de modo nenhum deslocada em circunstâncias em que o foco da atenção seja a comida e não o convívio. Caso contrário, concordo que o telemóvel não deva estar à esquerda ou à direita dos copos de vinho, mas sim fora do nosso alcance.