A POSTA MIRANDESA
Aparece assim muitas vezes designado nas ementas este prato típico da região de Miranda, em Trás-os-Montes, embora ultimamente também surja como Posta à Mirandesa. A introdução do à, que significa à moda de, parece querer descartar a obrigatoriedade de o confeccionar com vitela de raça mirandesa. Será que é legítimo elaborar este prato com outras raças bovinas? Mas também será legítimo usar outros cortes que não o habitual pojadouro, no norte designado por chã de dentro. Hoje em dia, é habitual encontrá-la do lombo, para compensar a ternura que se perdeu por serem usadas vitelas mais velhas ou até vacas. Depois há ainda a questão do modo como é grelhada e do molho e respectivos acompanhamentos.
Recorramos um pouco à história da Posta Mirandesa.
António Desidério, restaurador e proprietário do Solar Bragançano, recorda-se de comer a posta nas feiras onde acorriam carroças de feirantes com as vitelas penduradas para exposição e corte. A carne era cortada para levar para casa ou para ser grelhada nas brasas, feita ao lado da carroça e só com sal grosso como tempero. Pedia-se pelo peso e comia-se em cima de uma fatia de pão, cortada como o Palaçoulo, a freguesia de Miranda onde faziam, e fazem, bons canivetes. A sua ternura era o que mais impressionava, porque as vitelinhas não tinham mais de 4 meses e rondavam os 80 quilos de peso. O tempero era apenas sal grosso e não havia qualquer molho para tempero. Além da vitela, estas carroças também vendiam carne de porco da barriga e havia um pipo onde se enchiam jarros de vinho tinto. À mesa comia-se no prato com faca e garfo.
Recorrendo a José Quitério (who else...), encontramos a receita mirandesa, da posta dada nesta língua por António Mourinho, um padre local, etn e fundador dos Pauliteiros de Miranda de Duas Igrejas, que, já entrado na idade, saiu de padre para se casar:
“La Pôsta como Is mirandesas lhe chamã yê el petisco melhor i mais pronto que s’arranja ã Tierras de Miranda. Yê la maça de la bitela assada nas brasas i fôrtes, só cũ sal, siê outros temperos. El molho sai d’la própria carne, antrassada por dentro.», conta o padre Mourinho referindo que a posta “é o prato campesino das feiras de Terras de Miranda, Mogadouro e Vimioso, feito ao ar e comido com faca e garfo”.
O que daqui tiramos é que a posta só era temperada com sal e não levava outro molho senão os próprios sucos.
O molho que hoje acompanha a posta mirandesa parece ter sido criado pela Gabriela, dona de um pequeno restaurante em Sendim, na vizinhança de Miranda, terra do planalto mirandês onde se fala o sendinês, uma versão local de mirandês: No planalto mirandês criava-se muito gado, o tal da raça mirandesa. Eram bichos possantes destinados ao trabalho, e ninguém se lembraria de matar vacas de trabalho. O que se matava eram as tais vitelinhas pequenas, antes que começassem a dar despesa ou a tirar forças à mãe através da aleitação, ou a disputar-lhe o feno e o pasto.
Ora a tal Gabriela começou a servir a posta das feiras no seu restaurante e resolveu adicionar-lhe um molho, guardado em segredo, mas cuja base eram o azeite e o vinagre. O acompanhamento, batatas cortadas em quartos e alouradas. Esta Gabriela teve uma filha, a Alice, que por sua vez teve um filho, responsável actual pelo restaurante. A posta continuava a ser proveniente do pojadouro de uma vitela pequena, que não devia ultrapassar os 4 meses.
A célebre Gabriela, do restaurante homónimo, exemplo de restauradora lusa e transmontana. Ainda hoje se mantém a casa que inaugurou.
E cá voltamos a José Quitério, para que nos ilumine. Conta ele que, em 1981, esteve a comer a posta no Gabriela. Quem esteve também a comer a posta na Gabriela nesse ano foi José Saramago que descreve a experiência no livro Viagem a Portugal. Já nesse ano estava Alice, a filha de Gabriela, aos comandos. Conta quem as conheceu que eram as duas mulheres de força e determinação e tanto a barba da mãe como o bigode da filha impunham respeito. José Saramago descreve a posta que lá comeu como sendo «gigantesca, nadando em molho de vinagre» «que faz transpirar as maçãs do rosto.» e de «Carne branda, que a faca corta sem esforço».
Mas regressemos ao nosso José Quitério. Conta ele que em 1982 voltou a comer a posta pela mão da Alice na Quinzena Transmontana, um dos festivais regionais organizados por Nuno Lima de Carvalho, responsável pela animação cultural e artística da Sociedade Estoril Sol, e que teve lugar no Casino Estoril. Nessas alturas isentas de DOC, ninguém se preocupava com a raça dos bichos, mas sim com a sua ternura e sabor.
Hoje, queremos saber a raça dos animais. E mirandesas, não há vacas que cheguem para tanta posta. Daí que se tenha começado a fazer posta de outros raças, compensando o tamanho dos animais com um corte mais tenro, mas menos saboroso, como o lombo. A graça e o sabor de serem grelhadas nas brasas também já não é comum. enfim, transformou-se a posta num bife que só se distingue dos outros pelo tal molho de azeite e vinagre, a que geralmente se junta alho e picante. Quanto aos acompanhamentos, inexistentes na feira, de batatas alouradas na Gabriela, passaram a batatas à murro ou batata frita. Os grelos, acompanhamentos de tudo no inverno transmontano, também se perderam pelo esparregado de nabiças, muito bom pela acidez também, ou de espinafres, de pouco valor neste caso.
Mais uma chega: aquela posta gigantesca do pojadouro descrita por Saramago tem tendência a ser substituída pelo naco, com metade do tamanho.
No meu entender, o nome Posta Mirandesa devia ser acarinhado de defendido em Trás-os-Montes, correspondendo a um pedaço de carne do pojadouro de uma vitela muito jovem grelhado nas brasas e de raça mirandesa. Que traga o molho da Gabriela, ou outro ainda melhor. O acompanhamento não me parece tão importante, seja ele batata alourada, à murro ou frita, com ou sem nabiças. Depois, quando formos comer a Posta à Mirandesa, que seja o que se quiser, talvez um bife com batatas fritas.
A posta à mirandesa do restaurante O BRASA é de lombo de vaca.
A fotografia da carne nas brasas é do Solar Bragançano.