COZINHAR EM BARRO, O CASO DE MOLELOS
Um tacho de barro, o que quer lá venha dentro, traz à mesa, onde quer que ela seja, uma emoção muito especial, provavelmente porque corporiza duas dimensões do tempo, essa variável que constitui o verdadeiro luxo. A primeira variável remete para o tempo dilatado de confecção dos alimentos que cozinhamos no barro. A segunda, para a ancestralidade desta forma de cozer os alimentos, que nos faz viajar até ao Neolítico, época em que surgiu o trabalho com barro.
Um dos passos mais importantes para a cozinha, talvez quase a par com o fogo, foi, efectivamente, o domínio da cerâmica. Por um verdadeiro milagre, possível através de mão hábil e fogo, uma pasta amorfa, mole e húmida, o barro, transforma-se num recipiente de formas definidas, durável e resistente. São estes recipientes que levaram o homem a passar do regime australopiteco de grelhados, para as comidas caldosas, como as sopas, e ainda permitiram a conservação.
Em Portugal, temos ainda viva alguma produção de olaria, sendo a de Molelos uma das mais activas actualmente. Por convite da Câmara Municipal de Tondela, visitei Molelos e tive a oportunidade de aprender muito sobre estes barros.
O barro provem da zona de Molelos, mais precisamente de Molelinhos e de Canas de Santa Maria, apresentando cada um deles características diferentes que melhor se adaptam a certas funcionalidades. A sua principal característica é a cor negra, proveniente da cozedura que lhe mudará a cor. Tradicionalmente, as peças prontas eram cozidas numa cova feita no chão, a soenga, onde a loiça era empilhada e coberta com caruma e pinho, numa grande fogueira. Hoje usam-se fornos artesanais. O que é importante, é que o barro seja cozido num forno totalmente selado no fim do processo, para que o monóxido de carbono, emitido pela combustão, enegreça o barro, através de uma transformação físico-química dos óxidos metálicos das argilas.
É quase mágica esta transformação do barro que sai negro da cozedura e com característico brilho metálico, cuja origem está no alisamento do barro com um seixo, processo que simultaneamente impermeabiliza as peças e as torna adequadas à cozinha.
A cor do barro antes da cozedura
Da iniciativa fizeram parte interessantes visitas a três oficinas de oleiros, a Barraca dos Oleiros, de Carlos Lima e Xana Monteiro, a Olaria Moderna de António Marques e a Olaria Artantiga, dos irmãos Lourosa, que vêm recuperando o barro para o moldar em peças decorativas.
Hans Neuner, João Rodrigues, Diogo Rocha e Miguel Laffan trocam impressões com Maria De Jesus, a proprietária e cozinheira do restaurante 3 Pipos, onde jantámos. Na ementa, cabrito assado em enormes tabuleiros de barro negro, e arroz de costas, também em caçoila de barro negro. A acompanhar as carnes muito saborosas, vinhos da região: Quinta das Camélias, Sabugosa, e vinho biológico de Mouraz.
Se esta vertente decorativa pode ser interessante, será ainda mais recuperar o seu uso na cozinha, integrando os utensílios culinários na cozinha local, através das confecções lentas. Nesta vertente, a Câmara Municipal trouxe, no mesmo grupo, quatro conhecidos chefs, Hans Neuner, do Ocean, Miguel Laffan, do L’And, João Rodrigues, do Feitoria, e Diogo Rocha, do Mesa de Lemos. A ideia foi mostrar-lhes todas as potencialidades do barro negro de Molelos na cozinha contemporânea, tão interessada nestas cozeduras lentas.