DOIS LEITÕES, CARAMBA! ATÉ ENTERNECE.
Dois leitões de uma enfiada fez Eça de Queiróz comer ao desembargador de A Ilustre Casa de Ramires. O comum dos mortais, não possuidores da barriga do desembargador, ainda assim comiam perus inteiros, capões, bacalhauzadas de grandes e alcandoradas postas.
Ramalho Ortigão falava da ceia da véspera de Natal nas nossas terras do Minho como o banquete português «que desbanca todos os jantares de Pariz, mas que os desbanca inteiramente» (Em Pariz, p. 138), pondo a um canto o «francesismo galego» (adoro esta classificação) que afecta as ceias dos restaurantes nacionais.
Hoje as famílias mingaram, os apetites já não são o que eram, e a saúde faz parte das nossas preocupações alimentares. Guloso como é o português, sacrificou a bicharada ao reino da doçaria, que finca pé na mesa natalícia sem querer ceder um palmo de toalha. No entanto, nem sempre são as razões acima indicadas que guiam a escolha dos pratos de Natal. Há um fartura de tradição e uma necessidade de trazer para a mesa coisas novas, na linha do Surpreendam-me. Então, já que se quer a mudança, que esta se faça com pés e cabeça e que se tragam coisas mais saudáveis para a mesa, mas igualmnete bonitas e saborosas, onde ainda se possa reconhecer o sabor dos produtos principais.
Já no fim dos anos 70, princípio da década de 80, se via nas revistas da especialidade a substituição do peru inteiro, por partes do mesmo. Pernas, coxas e peitos desfilam numa infinidade de travestimentos. Na Teleculinária Especial Natal de 1980, p. 13, surge muito assertivamente esta ideia de contemporaneidade: Peru de Natal à Moderna é feito de coxas e pernas com um toque de festa dado pelas ameixas e pinhões. No mesmo opúsculo, a páginas 12, também as boas postas de bacalhau foram desconstruídas num green slime denominado Bacalhau Verde, com nabiças. Para este festival desconstrutivo, é essencial a contribuição de uma criatura extremamente popular na cozinha dos anos 60 e 70, e por aí fora, o molho bechamel.
Peru de Natal à moderna
Outro prato muito popular foi o de Rolinhos de Peru (Teleculinária Especial Natal 1982, p. 16), os Crepes de Bacalhau (ibidem, p. 12) ou os Bifes de Peru à King (Teleculinária Especial Natal 1979, p. 17). O béchamel também profana o bacalhau, como no fatídico bacalhau com natas, uma verdadeira praga nas mesas natalinas, e neste Rolo de Bacalhau à Marisqueiro (Teleculinária Especial Natal 1979, p.14-15) ou no Bacalhau Verde.
Rolinhos de peru
Crepes de bacalhau
Bifes de peru à King
Rolo de bacalhau à marisqueiro
No capítulo doceiro, também se verifica o progressivo banir dos doces à base de ovos e açúcar, sejam eles os conventuais ou os tradicionais, como os formigos, os mexidos (há quem distinga os dois, há quem diga que são o mesmo), as sopas douradas, as lampreias de ovos, e por aí fora. Em seu lugar, entram de rompante as sobremesas de colher à base de outra praga na doçaria nacional: o leite condensado. A fim de satisfazermos a nossa tendência para os doces muito doces, substituímos um sabor doce complexo e profundo com a banalidade do leite que é fervido à exaustão e se insinua em musses de frutos tropicais igualmente saídos de latas ou misturados com bolacha maria e natas. É na mesa dos doces que queremos ainda mais surpreender. Queremos dançar o samba no Natal, com os «doces fresquinhos», como o Natal Tropical com Gelatina e Fruta em Calda (Teleculinária Especial de Natal 82, p. 38) ou a Mousse de Caramelo e Nozes (Teleculinária Especial de Natal 89, p. 303).
Enfim, eu acho muito bem que se vão criando novas tradições à mesa, mas dada a riqueza da nossa doçaria será bom que não empobreçamos a nossa mesa de Natal.
No fim, o que importa mesmo é, e voltando a Ortigão, «essa particularidade que se não come e se não bebe: a memória dos entes queridos e dos entes amados» (Em Pariz, p. 138).
A fotografia de entrada é do magnífico pudim Abade de Priscos do Miguel Oliveira, denominado O Rei.
Quanto ao resto das fotos, na década de 80 eram mesmo assim.
Ortigão, Ramalho, Em Pariz, Tipographia Lusitana, Porto, 1868.