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Conversas à Mesa

HISTÓRIAS DE COZINHEIROS II: SALA E COZINHA

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Se a nossa cozinha se tem vindo a modernizar, a nossa sala não tem, infelizmente, acompanhado com o profissionalismo que estaria à altura das mudanças, salvo honrosas excepções. Os mais velhos ainda se lembram do nosso antigo serviço dos restaurantes médios, em geral feito por autodidactas de camisas de terilene e laços pretos, cuja mais valia era a aparente humildade, que os levava a fazer um serviço passável passando despercebidos. Porém, nos melhores restaurantes, o serviço de sala era muito activo, uma vez que a finalização dos pratos era feita à mesa. Trinchar, flamejar, despinhar, fazer um tártaro ou uma salada, tudo isto era levado a cabo pelo pessoal da sala. O ex libris dos empregados de mesa era o guéridon, uma mesinha dotada de uma placa e um bico de gás onde se realizavam uma longa série de operações frente ao cliente. Ali, e não na cozinha, estava o teatro e a emoção. Ali estava a transformação do que vinha da cozinha ainda em estado pré-cliente.

A velha rivalidade entre cozinha, os queima cebolas, e mesa, os gamelas, era constante, com vantagem para a mesa, a única face visível da restauração, já que os cozinheiros nem sequer sonhavam em sair das cozinhas e muito menos em entrar na sala.

A carreira da sala era longa e começava geralmente na juventude, com ou sem formação profissional, traduzindo-se numa longa aprendizagem laboral e numa carreira que poderia culminar no almejado posto de maître d’hôtel ou chefe de sala.

 

Hotel-Aviz.65.jpgServiço de guéridon no antigo hotel Aviz 

 

Estava o serviço de sala organizado em torno de uma forte hierarquia, no topo da qual oficiava o gerente, responsável por sala e cozinha. Tão intensa era essa hierarquia, que, no princípio do século XX, cada um tinha o seu lugar, até na hora da refeição. O maître d’hôtel, ou chef de sala, comia em sala à parte, servido por empregados de mesa aprendizes e com talheres de prata. Segue-se-lhe na hierarquia o chef de cozinha, que jantava na cozinha na sua própria mesa, sendo servido por um aprendiz de cozinha, os restantes cozinheiros, os empregados de mesa e, no fim da lista, os plongeurs.

Nessa época, uma das poucas vitórias pessoais da cozinha sobre a mesa tinha a ver com bigodes: como na sala eram interditos, os cozinheiros envergavam-nos todos orgulhosamente, para marcarem a diferença e fazerem pirraça. Veja-se a bigodaça do maior de todos eles, o grande Escoffier. Ou do nosso restaurateur João da Mata (na foto em cima), que abriu diversos hotéis em Lisboa, nomeadamente o famoso Grande Hotel que ostentava o seu nome e residia no antigo palácio Sobral (e não no vizinho palácio do Calhariz como já vi escrito). O edifício deste hotel, que encerrou em 1879, situava-se no largo do Calhariz e fora já quartel general de Wellington em 1811, tendo sido vendido em 1887 para sede da Caixa Geral de Depósitos.

 

 

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É apenas com o nascimento da nova cozinha francesa, a Nouvelle Cuisine, no fim dos anos 60, princípio dos anos 70, que a equipa de mesa perde importância para a cozinha. Esta verdadeira revolução torna desnecessárias as preparações feitas na sala, uma vez que os pratos já vêm completamente prontos da cozinha. É o triunfo do prato e da vertente visual, da cozinha sobre a sala, onde passam a aparecer regularmente os cozinheiros para interagirem com os clientes. Nasciam novas estrelas mediáticas.

Em 1998, Fredy Girardet, o célebre chef suíço do restaurante de 3 estrelas com o mesmo nome, afirmava que a Nouvelle Cuisine tinha transformado o pessoal da sala em “ simples transportadores de pratos, cuja actividade se limita a levantar em conjunto as cloches em prata.”

 

 

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Paul Bocuse, Freddy Girardet e Robuchon 

 

Não é desejável nem verdadeiro que assim seja. Todos sabemos que o serviço de sala continua hoje a ser extremamente importante. Mal feito, pode destruir completamente um restaurante, ainda que este seja dotado de uma óptima cozinha.

Sabemos ainda como é importante o serviço num restaurante de topo e como este deve estar casado com a cozinha na criação do mise-en-scène que o cliente tanto aprecia. Nele, o empregado de mesa é uma espécie de representante do cozinheiro no teatro da sala. Por outro lado, ele é o transmissor das «mensagens do chef». Nada pior que ir a um bom restaurante e ser brindado com uma má ou incompleta descrição dos pratos. Num restaurante com estrela Michelin ou com pretensões a esta, é obrigatório que o serviço nunca seja pedido, mas sempre adivinhado e antecipado. O melhor empregado de mesa tem artes de psicólogo e interpreta as necessidades de comunicação do cliente, sem nunca se esquivar a elas mas também nunca as impondo.

 

Com a crescente importância do vinho na gastronomia, o sommelier ou escanção veio valorizar imensamente o contacto com o cliente, sendo responsável pelo seu aconselhamento directo em matérias vinícolas e pelas harmonizações com menus de degustação e pratos. A sua função é muito importante, sabendo todos nós o peso económico que o vinho tem hoje na restauração.

 

 

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Um grande escanção, Inácio Loureiro, do Fortaleza do Guincho, recebe o prémio da Academia Internacional de Gastronomia 

Finalmente também não é fácil trabalhar nas salas dos restaurantes que constituem o novo trend: aqueles que não são apenas uma pretty face, mas onde tudo o que vem da cozinha é bom. Aqueles onde se pode ter tudo, um bom ambiente e bons produtos. Aqui é preciso também um grande equilíbrio na sala para se poder manter o ambiente informal, sem nunca deixar de ter serviço. Não se pense que é fácil. Para ser moderno não basta vestir um avental de bistro ou uma t-shirt preta. Contudo, também aqui é muitas vezes o serviço que faz a diferença.

O que nunca podemos esquecer é que sala e cozinha são uma só equipa. Só o trabalho conjunto das duas pode tornar um restaurante bem sucedido.

 

Continua com o tema: Cozinheiros, os novos proprietários