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Conversas à Mesa

NÃO SE AFEIÇOEM A NINGUÉM?

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O motto de Game of Thrones, a série que ia matando ou desgraçando os mais estimáveis heróis com quem mais facilmente nos identificámos, prova-se também válido nas cozinhas portuguesas, sobretudo lisboetas: Não se afeiçoem a ninguém, porque esse alguém com quem criam laços irá desaparecer mais dias menos dia.

Hoje, a rotação dos cozinheiros à frente dos restaurantes é tão vertiginosa que José Quitério, que só visitava os restaurantes depois de seis meses de abertos, arriscar-se-a a não ter assunto para as suas crónicas semanais.

A mim, já me aconteceu meter na gaveta alguns posts, porque, tendo esperado o tempo da praxe para visitar os restaurantes (actualmente para mim dois, três meses), não conseguia publicar porque, quando o texto ficava pronto e as fotos tratadas, o cozinheiro ou o conceito tinham sumido ou a casa encerrara portas.

E mesmo quando já passaram dois anos da abertura, e nós, ainda um bocado a medo, nos permitimos ir afeiçoando a um restaurante, achando que conceito e chef estão seguros, aí vem a surpresa: fulano saiu de X, ou o restaurante Y encerrou portas.

Este tipo de desastres não acontece em restaurantes de grandes grupos, que se salguardam não publicitando os nomes dos chefes dos diversos restaurantes. Quando estes grupos têm um chef/empresário (como o grupo de José Avillez ou do Kiko) também dá jeito não os divulgar, a fim de não prejudicar a ideia de que eles ainda põem a mão na massa (excepção feita a David de Jesus do grupo José Avillez). Já em grupos como o Multifoods, é o empresário Rui Sanches quem costuma dar a cara, ou os chefs dos seus restaurantes de topo, nomeadamente Henrique Sá Pessoa e Luís Gaspar. Estes grupos não costumam fechar restaurantes (de momento só me lembro de uma excepção, o Watt, do grupo do Kiko). Provavelmente, porque fazem bons estudos económicos de viabilidade antes de abrirem conceitos, e porque os vários elementos do grupo se vão apoiando em tempos de crise de algum deles. Porém, em todos os postos das cozinhas destes e de quaisquer outros restaurantes, a rotatividade do pessoal é hoje pantagruélica (para perceber as causas deste fenómeno, leia o texto de Pedro Cruz Gomes no seu blog gastrossexual - aqui).

Ao lado destes grandes grupos, há, actualmente, um grande número de investidores de restaurante único que nunca tiveram experiência de negócio em geral e nem das peculiaridades da restauração, mas que querem aproveitar o boom do turismo. Abrem one night stands, ou one day stands, porque só são frequentados por turistas e estes só lá vão uma vez. Como há paletes de turistas e se situam nos locais que estes frequentam, vão-se aguentando.

 

Outras vezes, vemso abrir (e fechar) restaurantes em que parece não ter havido entendimento claro entre o restaurador e o cozinheiro. Nem todos os projectos dos chefs são viáveis em termos comerciais ou até de aceitação pelo público, por muito criativos e extraordinários que os próprios os achem. Lembro-me de ter assistido à morte de alguns deles que eram extraordinárias casas de comida, como o Estória, de Vítor Areias, ou o Bagos, de Henrique Mouro, ou o Sociedade, de Leopoldo Calhau.

 

Por vezes, parece que os restauradores, aqueles que financiam os restaurantes apostam em conceitos inviáveis sem disso se aperceberem. Depois de um período de noivado entre restaurador e cozinheiro, acabado o tempo destinado ao break even sem que os lucros comecem a entrar, o proprietário começa a querer cortar no food cost, ou a experimentar novos projectos que estropiam ou inviabilizam os conceitos dos cozinheiros. A partir daqui nada resulta, as partes acabam por se desentender e divorciar, e sobrevém o fecho do restaurante ou a substituição do cozinheiro.

Um restaurante ou um conceito parecem hoje objectos descartáveis. As novas gerações adoptam um restaurante ou um conceito e repetem até se fartarem, mudando-se em colectivo para novo restaurante ou novo conceito, até o esgotar ou deixar de estar na moda. Fazem grandes filas à porta dos restaurantes, o sinal evidente de que estão na moda, assim como a ausência de possibilidade de reserva. Há até quem ofereça refeições para ter gente a fazer filas à porta.  O pessoal quer comer em bairros de restaurantes e não nos restaurantes de bairro. Tudo se concentra no Chiado, no Bairro Alto (cada vez menos) e no Príncipe Real (cada vez mais). Muita gente? Muto divertimento.

 

 

Foram os próprios chefs coniventes desta ânsia da novidade e da surpresa no público. Assim que certa casa ou conceito saem de moda, torna-se difícil manter a clientela, a não ser quando integrados em projectos de grandes grupos com grandes investimentos em publicidade e marketing e com muito jogo de cintura para ir mudando conceitos à medida que os anteriores vão perdendo público. Assim vão conseguindo vender comida de baixo food cost a preços demasiado altos porque se paga a novidade e o glamour.
Vimos surgir o sushi, e conseguiram pôr o portuga a comer aquilo que pensava ser peixe cru muito saudável, mas que afinal, graças à intervenção estado-unidense, não era mais que fritos, ou arroz e mais arroz. Depois, aqui há uns 5 anos, surgiu a profusão do hambúrguer, surgiram hamburguerias nos bairros e em todas as esquinas, como piolho por costura. Habituadinhos ao cru do sushi, os tugas são assaltados pelas cevicherias; mais tarde pelos poke, que trouxeram para o ceviche a fruta, que os rodízios tinham já trazido para a pizza.

A maioria das tendências vem de fora, embora com algum atraso. O Japão chegou recentemente com os ramen (também de origem chinesa), uma espécie da nossa canja, mas com outras carnes ou peixes, e em vez da nossa delicada e discreta massinha de pevide, uma grande dose de massa de tiras e muito sal. Este Inverno ainda vão andar por aí.

Outra tendência actual nos cozinheiros que praticam cozinha inspirada na nossa matriz é definirem o seu conceito pela deificação do produto, coisa que faz mais sentido quando a cozinha é, no mínimo, sazonal e a carta vai mudando, mas cuja plenitude residiria na chamada cozinha de mercado, que varia diariamente conforme o que está disponível nos produtores. A maioria das vezes este conceito é apenas uma bandeira que se agita porque é politicamente correcto (sim, hoje a cozinha anda atrás do politicamente correcto), e nem os produtos têm qualquer qualidade, nem são da estação, nem comprados directamente a produtores nacionais. Seguem-se modas em produtos, que geralmente são levados aos restaurantes, do chícharo ao limão galego, assando pelo yuzu. Depois é ver as vagas destes ingredientes nas cartas de vários restaurantes, tudo ao mesmo tempo.

Raramente os chefs das cidades correm o país à procura dos melhores produtos. Mais facilmente vão ao Japão, ao Chile ou à Tailândia conhecer os mercados. Mais raramente, estabelecem acordos com os pequenos produtores para um abastecimento sustentável, ou adaptam as cartas dos seus restaurantes ao que está a ser produzido no momento.

O resultado? Ementas muito semelhantes, conceitos débeis, pouca criatividade, pouca sustentabilidade. Mas como é recompensador ver casos de restaurantes propriedade de certos cozinheiros ou de bons restauradores, muitas vezes situados fora das zonas urbanas, e que vingam com toda a força e se enraízam nos nossos hábitos quotidianos. Venham mais desses, porque os millenials também já aprenderam que há outros critérios de escolha mais saudáveis do que os da fila à porta e a decoração da moda.

O meu conselho? Comecem a afeiçoar-se a alguém, para que esse alguém se torne sustentável e nos possa ir continuando a dar muitas alegrias. Mesmo sem filas à porta.

 

 

 

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