O BOLO-REI
No Natal, gosto mais das sobras, reconstruídas. Sabe-me melhor a roupa-velha do que o bacalhau com couves da ceia, e só gosto do bolo-rei em fatias torradas e amanteigadas. Não sou grande fã do bolo-rei. Durante alguns anos, fazia-o em casa, mas nem por isso me conquistava. Porém, sou incapaz de passar o Natal sem ter um, acho as cores das frutas cristalizadas lindas e acho que enfeita muito bem a mesa. As frutas são supostas simbolizar as pedras preciosas da coroa.
Lembrei-me de escrever sobre este ícone natalino transversal a todo o país depois de ontem ter sido convidada pela France Press para falar sobre o bolo-rei para um programa de televisão.
Em primeiro lugar, tenho pena que a massa do bolo não seja mais amanteigada e menos seca, mais tipo brioche, que está na sua origem. O uso da margarina e dos químicos da conservação tornam-lhe a massa seca. E que as frutas cristalizadas não sejam de melhor qualidade. Foi trazido no fim da década de 1860 para Portugal por um pasteleiro francês, o Grégoire, que trabalhava para a Confeitaria Nacional, inspirado certamente pela Couronne des Rois, da Provença, feita com massa de brioche e frutas cristalizadas. Foi um sucesso, depressa copiado pelas outras pastelarias.
Em todo o mundo, em inúmeros países (México e Espanha, Roscon de los Reyes,Nova Orleães, King Cake), há um bolo deste género que parece ter origem na Idade Média, época em que a fruta cristalizada era uma arte muito apreciada nas mesas mais finas. Esse bolo terá sido um branqueamento de tradições pagãs, que fazia daquele que achava a fava ou a prenda (conforme a tradição local) o rei, numa inversão simbólica. É este papel simbólico que dava o valor ao nosso bolo-rei, valor esse que se perdeu com a lei de 1990 que proibiu a fava e a prenda. Embora uma nova lei de 2001 estes tenham sido novamente permitidos desde que não constituam risco para a saúde pública, os pasteleiros nunca as reintegraram. É uma pena, porque eram estas duas adições ao bolo que lhe davam verdadeiramente valor. Para os Romanos, a fava era uma superalimento carregado de valor simbólico. Os mais velhos lembram-se bem da emoção e da batota que fazia que a fava e a prenda. Aqui fica o meu apelo para recuperarem a prenda e a fava, usem a vossa criatividade senhores pasteleiros por favor. E se puderem melhorar a qualidade da massa... Acho que seria bem mais importante do que a quantidade de novos bolos-reis - de castanha, de chocolate, sem frutas, rainha, escangalhado - que proliferam por aí.
Fica ainda um conselho: o melhor bolo-rei nunca é o do Natal nem dos Reis, alturas em que o grande consumo leva geralmente à redução do tempo de levedação (já de si encurtado pelo recurso a vários químicos). Para quem aprecia, é preferível consumi-lo antes destas festas.
A todos os que fazem favor de me ler, os meus votos de Boas Festas com um abraço igualmente festivo.