O CAPÃO OU QUANDO MENOS É MAIS
Fui convidada há alguns dias para um jantar no restaurante Avis a cargo do Cláudio Pontes, ex sous chef de Aimé Barroyer. O jantar integrava-se numa louvável iniciativa denominada ENDÒGENOS, que pela mão de António Alexandre e Nuno Nobre nos permite partilhar experiências gastronómicas baseadas nos nossos produtos autóctones. O endógeno do jantar era o capão, que podemos caracterizar como o eunuco do reino dos galináceos. Porque tal como os seus contrapartes dos antigos haréns (antigos digo eu), começa a engordar a bom ritmo depois de capado e já não faz mal (ou bem) a ninguém. A sua carne amacia mas mantém todo o seu sabor, ou seja, tem o melhor dos dois mundos, o do galo e o do frango.
O capão, não é um qualquer, é o capão de Freamunde (Paços de Ferreira) com o seu garboso IGP. Esta protecção jurídica obriga a várias regras. Os frangos devem ser castrados entre os 3 e os 4 meses, estando o processo de castração sujeito a especificações com as quais não vos vou impressionar. Direi apenas que, como no caso da matança do porco, o acto não é feito por ninguém da casa, mas sim por profissionais, geralmente uma mulher, que também lhe corta crista e barbilhões.
A memória da perda da crista
Desde o século XV, e até hoje, que se realiza, no dia da festa de Santo António (13 de Dezembro), a feira do capão em Freamunde, tendo o galináceo sido considerado produto de luxo e usado como moeda de troca e de pagamento aos nobres e ao clero. Tão venerado é o capão que tem direito a honras de mesa natalícia em vez do peru, que aliás substitui com grande garbo.
No jantar dos Endógenos do Avis, o capão foi muito bem tratado e esteve presente em todos os pratos, desde o aperitivo até à sobremesa, um feito difícil de alcançar. Gostei da história criada para encenar o jantar, contando a saga da ave desde o ovo e passando pelos momentos mais importantes da sua vida. O aperitivo com que se iniciou a refeição, foi o dry capão, servido num ovo e com uma bolinha de carne no lugar da azeitona. Gostei especialmente da combinação do capão, um crocante da pele e o nabo, um legume que anda muito alheado da nossa cozinha (miúdos de galinha com nabos é uma combinação tradicional e deliciosa). O último prato principal tinha o saboroso recheio tradicional do capão.
Pele crocante e nabo
Gostaria de ter usufruído do prato tradicional do capão à Freamunde, recheado e assado no forno, reluzindo na sua pele dourada. É realmente um prato maravilhoso e digno da mesa dos reis.
No fim, uma genial sobremesa que recriava o entorno alimentar do capão e que reafirmava a presença do ovo, no recomeçar de um novo ciclo. Gostei particularmente da maneira como o capão foi incorporado na sobremesa, com o fígado do bicho a rechear uma trufa de chocolate. Nem a propósito, termino com uma citação do Livro De Bem Comer, do sempre imprescindível José Quitério: “Camilo Castelo Branco aconselhava que ante o grande capão flamejado com aguardente velha que incorporava a memória em tanino de todos os carvalhos de Portugal [...] se fizesse mentalmente a biografia da ave, desde que saiu do ovo e foi vendida na feira de Barcelos, e desde que entrou no forno até que na mesa o próprio Camilo o trinchou.” Foi exactamente o que Cláudio Pontes fez ao longo do jantar.
Parabéns ao Cláudio Pontes pela refeição e parabéns aos mentores do projecto Endógenos. O próximo jantar é em redor das algas e terá lugar em Peniche. A não perder (ver Endògenos no FB).