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Conversas à Mesa

O DIA DA MATANÇA DO PORCO COM FILIPE RAMALHO

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Dia 11 de Fevereiro, o chef Filipe Ramalho (restaurante Páteo Real, em Alter do Chão, Alto Alentejo), faz um almoço da matança do porco, acompanhado pelo lado lúdico da música, a cargo do Cante Alentejano do grupo Os Cá d’Cima. O dia

Começa com a matança, às 9 h, segue com o pequeno-almoço típico de migas de pão com toucinho frito e café. Depois, ensina-se a desmancha do porco. O almoço é preparado em cocaria alentejana: sopas de cachola, serrabulho, carnes grelhadas e migas de pão. A abrir, os enchidos da Salsicharia Canense, papa ratos e torresmos do rissol. Um dia passado em redor desse animal de que tudo se aproveita, o nosso bacalhau de terra.

 

Segue-se a primeira parte de um texto do meu livro Sabores do Ar e do Fogo, sobre a matança do porco. A segunda parte sairá para a semana que vem.

 

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«Que, depois de morto, é óptimo, não há dúvida e n’isso se assemelha a muitos indivíduos da espécie humana que, quando se vão d’esta para a outra vida, passam a ser todos excelentes.»

Costa Caldas

Revista A Tradição, Serpa, Outubro 1903

Está um frio rijo, um daqueles dias de janeiro de ar completamente limpo que nem o sol aberto conseguirá aquecer. Ainda não são sete da manhã e já o pessoal, alguns familiares e amigos, se juntaram na casa de quem vai matar. Os homens concentram-se à porta, a sorver golinhas de aguardente ou a beber vinho tinto, e a depenicar um lastro de figos secos e castanhas, distraindo-se enquanto esperam o matão. Lá dentro, as mulheres tomam café e fazem os preparativos para esse dia e para o seguinte, o da desmancha. Na véspera, tinham posto a casa num brinco e preparado alguidares e todo o material necessário. No concelho transmontano de Vinhais já se anda cansado de tanta matança e comilança, que a época está mesmo no fim e para trás fica uma vasta roda destas funções.

 

 

A matança do porco não é apenas mais um dia de festa ou de trabalho. Não pode ser vista isoladamente, mas sim integrada num numa quadra festiva que se prolonga pelos meses de Novembro e Dezembro, entrando, por vezes, em Janeiro.  Caracterizada pelos prolongados excessos alimentares e pelo ludismo, prepara o corpo e a mente para suportar os rigores e a dormência do Inverno. Foi esta a lição ensinada pelo antropólogo Brian Juan O’Neill, que viveu durante dois anos e meio na aldeia raiana de Seixas, perto de Vinhais, a estudar o fenómeno da matança enquanto “actividade humana produtiva, festiva, lúdica competitiva e ostentosa”.

Outras perspectivas há acerca da matança, como a do galego Cunquero que, do outro lado da raia, vê a matança como uma festa dos cristãos-novos, um estandarte da sua inquestionável cristandade, numa época em que a Inquisição não dava tréguas, mesmo em aldeias remotas.

Em Trás-os-Montes, a matança, ou mata-porco, tem lugar no fim da apanha da castanha e da noz e da semeadura do centeio e calha mesmo na altura de abrir o vinho. Coincide também com a época da inanição da natureza, que deixa de produzir para entrar em dormência profunda, cobrindo-se em alguns locais com manto de neve.

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Marco na vida comunitária da ruralidade,. , cujo relógio é a sucessão das actividades agrícolas, a matança congrega o espírito da formiga, que prepara a despensa para os rigores do Inverno, e o da cigarra, cujo espírito lúdico não tem parança. [...] Nenhum outro animal, seja ele cabra, ovelha, vaca, ou até a sempre cobiçada caça, provoca tão grande alvoroço na vida quotidina como o porco. O abade de Baçal chamou-lhe «o animal mais prestadio da culinária transmontana». A matança é acompanhada por uma forte componente lúdica, bastante mais intensa do que a presente em ceifas, desfolhadas, vessadas, vindimas, malhas de centeio ou espadeladas de linho. Às brincadeiras, como meter a unha do cochino no bolso do mais incauto ou de lhe pendurar o rabo suíno no cós das calças, ao desfiar de histórias masculinas ou femininas, às cartadas de bisca ou de sueca, aos prazeres da comida e da bebida, junta-se  a força «do erotismo difuso que paira no ar, e das liberdades que ocorrem, do sentido da fartura que deles emana, e a sua integração na ordem natural», conforme observou Ernesto Veiga de Oliveira, grande renovador da Etnologia em Portugal, em meados do século XX.

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SABORES DO AR E DO FOGO - FÁTIMA MOURA - EDIÇÕES CTT

FOTOS DE MÁRIO CERDEIRA

Para a semana, continuamos com a matança.