O MAR DE HENRIQUE SÁ PESSOA
E incontestável que a qualidade do panorama restaurativo português tem a vindo a melhorar substancialmente nas últimas duas décadas. Se nos lembrarmos do que ainda eram os nossos restaurantes no princípio dos anos 90, não poderemos deixar de nos espantar com a evolução havida em curto espaço de tempo.
Se por um lado a restauração conseguiu superar largamente a crise iniciada em 2008, mesmo ainda sem a recente e significativa baixa do IVA, por outro o turismo trouxe nestes últimos dois anos as bases de consumidores necessárias ao boom restaurativo. Os nossos investidores souberam continuar a confiar no mercado e inundaram de restaurantes Lisboa, Porto e Algarve (mas não só), dificultando a vida de quem quer escolher um bom local para uma refeição.
Hoje, claramente, há massa crítica entre os portugueses para a cozinha contemporânea e os restaurantes não vivem apenas de turistas. Embora o discurso de alguns dos cozinheiros ainda esteja um pouco atabalhoado quando se trata de definir a sua própria cozinha, vacilando entre a cozinha de autor, a cozinha da avó e a cozinha de produto, existe uma sólida oferta de restauração moderna apoiada na nossa tradição e nos nossos produtos que a vão tornando única no seu conjunto. Mas este é um tema que dá pano para mangas e eu hoje quero é falar-vos do restaurante ALMA. Henrique Sá Pessoa é um cozinheiro com muita consistência, qualidade que infelizmente faz muita falta a alguns, e com uma alma muito especial para a cozinha de fusão. Ele é mestre nas combinações, sobretudo naquelas com um toque asiático. O resultado é sempre harmonioso, lógico e muito saboroso.
A convite do Henrique experimentei o menu de degustação Costa a Costa que fala expressivamente do nosso mar, dos moluscos, dos bivalves e do peixe combinados com produtos mediterrânicos, como o tomate ou os pimentos. Porém, eu queria mencionar dois pratos em especial. O lombo de tamboril é um prato de reconhecível assinatura de Henrique Sá Pessoa. Ele é mestre nesta fusão de influências, neste caso tailandesas, das quais resulta uma combinação que se quer voltar a provar.
O segundo é a sobremesa. Quando um pedaço de mar com uma verdadeira colónia de bivalves chegou à mesa carregada de impacto visual, pensei cá para mim: «Com estes ingredientes marinhos e esta acidez como pode resultar esta sobremesa?» Mas, incrivelmente, resulta em pleno: salgado e doce reunidos em certos elementos como o suspiro de tinta de choco e as algas cristalizadas, numa intensa e sábia conjugação com a acidez do sorbet de yuzu e da magnífica calda de citrinos. Parabéns também ao pasteleiro Telmo Moutinho.
Boa actuação da equipa de sala, profissional, conhecedora e cortês. O ritmo de serviço foi muito bom, apesar de na mesa estarmos duas pessoas a comerem dois menus de degustação diferentes. Sá Pessoa colabora activa e simpaticamente com a equipa de sala.
Uma palavra ainda para a própria sala, toda ela decorada com materiais quentes, naturais e confortáveis. A sala de entrada é particularmente espaçosa, com o pormenor agradabilíssimo de uma boa separação das mesas redondas. A cozinha está às vista, mas sem impor à sala.
Termino voltando ao início. Temos hoje massa crítica no nosso panorama restaurativo para que este já tenha visibilidade no exterior e para que se lhe sucedam os frutos em termos de estrelas Michelin e outras classificações, provavelmente ainda este ano. O mais desejável seria que houvesse diversos restaurantes a receberem uma estrela. É por aí que se começa, e o Alma é um merecido candidato.
Obrigada ao Mario Cerdeira pelas fotos. Mais uma vez. A milionésima.
O menu de degustação Costa a Costa
Três amuse bouche. Ao meio um extraordinário gaspacho (escorrido, sobra um caldo quase sem cor mas com um sabor puro e intenso a tomate)
Tempura e coulis de pimentos vermelhos assados: a tempura é negra mas não queimada. A vontade é pedir três ou quatro destes.
Cavala, escabeche de legumes, caldo de mexilhão e percebes, alface do mar
A essência do camarão
Polvo assado, romesco, casca de batata, alcaparras, paprika fumada
Salmonete, caldeirada, xerém, salicórnia
Lombo de tamboril, flor de courgette, caril verde, leite de coco, camarão da costa: um prato de autor, ou seja, em que se reconhece perfeitamente a identidade de Henrique Sá Pessoa
Pré-sobremesa cítrica
Mar e citrinos