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Conversas à Mesa

OS BIFES DE LISBOA

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Do meu último livro, Semear sabor, Colher Memórias, a história dos famosos bifes de Lisboa e a receita do meu favorito, o Bife à Faustino.

 

 

A carne é fraca

 

O aroma intenso, a cor vermelha, a textura que nos resiste quando lhe metemos a faca, são sensações com que a carne nos atinge descaradamente, mexendo com todos os sentidos e com a parte mais profunda do cérebro, definida pela nossa herança bárbara de caçadores e comedores de carniça. Os povos do norte germânico que pela península passaram tinham nas suas terras um clima frio que permitia a conservação das enormes quantidades de carne geradas pela matança de um só bovino. Pelo contrário, Roma, com clima mais quente, pouca carne de vaca comia. Guardavam os bois para o trabalho e os terrenos para a agricultura, considerando os pastos um desperdício da terra. O seu gosto pela fineza da carne das aves prolongou-se pelas mesas nobres da idade Média meridional, onde a carne bovina foi remetida para segundo plano da hierarquia dos alimentos, que reflete e se reflete na organização social. Nós portugueses não somos ainda hoje grandes entusiastas da carne de vaca, talvez pela sua atual falta de qualidade.

 

Os bifes foram popularizados pelos próprios «bifes», os ingleses, que os introduziram em França, depois da batalha de Waterloo. Como sempre, os franceses fizeram versões melhoradas, enriquecidas com diversos molhos e manteigas, frios ou quentes. Foram os franceses que elevaram o bife ao céu das preparações culinárias com o Tournedos Rossini, uma criação de Marie-Antoine Carême, o rei dos chefs, que foi chef de reis e até de um imperador gourmand, Napoleão Bonaparte. Do outro lado do campo de batalha, surgiu o beef Wellington, homenagem sofisticada de um desconhecido a este marechal who couldn’t care less about food[1].

Porém, foi nos EUA que os vários tipos de steaks se tornaram símbolo da «verdadeira» comida e, sobretudo, da comida viril. Popularizaram-se em clubes nova-iorquinos, nos quais os homens mais abastados se juntavam para grandes almoçaradas de suculentos bifes, comidos em série sem qualquer guarnição e regados com canecas de cerveja. O hábito neste país é acompanhar-se o bife com batata assada, já que a frita está reservada para os hambúrgueres. Com frites, as batatas fritas palito, comem-no os franceses, que o regam com um encorpado vinho tinto.

 

Nós por cá, já tivemos melhores carnes. Nos fins dos século XIX, Lisboa ainda era abastecida com grande cópia de bois vindos da Beira, o que permitia comer um bom bife até nas tabernórias menos recomendáveis. Não foi por falta de legislação que a situação piorou tanto, que sempre a tivemos apertada. Regulamentámos matadouros e açougues, mas nunca dominámos a técnica correta de separação dos cortes das carcaças. Misturamos diversas peças, agregamos músculos de texturas diferentes e, por outro lado, passamos demais a carne, talvez por, à partida, a sua qualidade ser má e por questões de saúde. Até há bem poucas décadas, o bife era comida de cidade e de «rico». Comer uma «bifalhada» significava abastança alimentar. Foi só a seguir à Segunda Guerra Mundial que o advento da refrigeração foi permitindo a vulgarização da carne de vaca.

 

Na Lisboa do fim do século XIX era comum servir bifes em cafés e cervejarias, muito apreciados por famosos escritores e jornalistas a quem este alimento sanguíneo renovava as forças intelectuais. Chegou até aos nossos dias a fama de alguns desses bifes, de que falaremos neste capítulo.

Tinham geralmente em comum o serem feitos em frigideira de ferro e iniciados na banha, com a adição posterior de manteiga. Variavam as batatas fritas do acompanhamento. O «bife à inglesa» levava batata cozida no vapor e tinha a originalidade de não ser frito, mas sim grelhado em madeira de sobro. Caracterizavam-se por um aquecimento intenso inicial que selava a carne e a deiva vermelha no interior[2].Rematava-se com manteiga, sumo de limão e salsa, como se de um à la meuniére se tratasse. Servia-se na célebre Taverna Inglesa, também chamada Café Price, uma casa situada na zona do Cais do Sodré, mais precisamente na esquina da Travessa dos Remolares com a 24 de Julho, no nº 76. Segundo o Novo Guia do Viajante em Lisboa, Collares, Mafra, Batalha, Setúbal, Santarém, Coimbra e Bussaco, esta casa «fornece almoços e mesmo jantares à inglesa; é notável pelos seus bifes, e muito frequentada por estrangeiros e marítimos». Grelhados em lenha seria a confeção mais comum dos bifes no princípio do século XIX. Em O Cozinheiro Completo, de 1855, pode ler-se esta receita de «bifes de filetes [lombos] de vaca»: «Corta-se o filete da grossura de seis linhas e de forma redonda. Tempera-se de sal e pimenta inteira; ensopa-se em manteiga derretida, põe-se a passar sobre as grelhas, e com grande brazido, serve-se logo, sem se deixar passar muito tempo. Pode-se pôr debaixo um môlho picante ou uma substância clara»[3].

Um outro bife famoso era o do Montanha. Este estabelecimento surgiu em 1860, na Rua do Arco da Bandeira, pela mão de «Manuel Nunes Ribeiro Montanha, dandy endinheirado, grande janota da época e estroina»[4]. Foi frequentado «pela jeunesse dorée do tempo»[5] e pelas colónias francesa, belga e suíça. O «culinotécnico», termo curioso que surge nesta mesma crónica de 1956, era um francês de nome Muma Serrière, criador de um original bife com rodelas de tutano.

Ainda hoje, o bife com batatas fritas é um dos pratos típicos das cervejarias. Infelizmente muito abastardado, até nas mais populares e, hoje, mais turísticas. Continua a ser fraca a carne, e os molhos piores do que nunca, verdadeiras aguadilhas engrossadas à custa de farinhadas. Na década de 50, já a pena de Alfredo de Morais reconhecia que: «O truque dos farináceos para engrossar a composição é camuflagem da actualidade.» Uma atualidade que infelizmente está cada vez mais atual.

Aqui fica um dos clássicos bifes de Lisboa que considero dos mais ricos, o Bife à Faustino. 

 

 

Este bife é rico em sabores e requintado. Em vez de ser apresentado a cavalo, o ovo é mexido e surge no interior de meio tomate passado na manteiga. Foi criado pelo Faustino, cozinheiro/restaurador num estabelecimento, o Culinária da Avenida, situado numa esquina da Calçada da Glória, que mais tarde albergou o restaurante Trocadéro, o stand Dodge e, a partir de 1932, o Café Palladium.

Este Faustino era o pai de Alfredo de Morais, por sua vez também restaurador. A atividade deste último passou pela criação (entre fim da década de 20 e princípio da de 30), do Coq d’Or, localizado na R. Serpa Pinto, no Chiado, e do Majestic Club, situado na Rua das Portas de Santo Antão no58. Este último era um famoso dancing e casino de Lisboa. Inaugurado em 1910, época da trepidante primeira República, foi um de vários estabelecimentos do género na zona da Avenida e do Rossio.

Porém, Alfredo de Morais ficou mais conhecido como cronista na área da gastronomia, uma espécie de Curnonsky português, com quem até apresentava semelhanças físicas, e de quem traduziu o livro «À l’infortune du pot», publicado pela editorial Minerva em 1950.

 

 

 

BIFE À FAUSTINO 

Para 1 pessoa

1 colher de sopa de banha

1 fatia de pão de forma, cortada em função do tamanho do bife

1 bife do lombo, ou da vazia, com cerca de 200 g

1 fatia de presunto, demolhada durante 20 minutos

1,5 colheres de sopa de manteiga

1 tomate, sem a tampa e limpo de sementes

1 ovo, batido

sal e pimenta preta de moinho

 

  • Numa frigideira (de preferência em ferro), derreter a banha e fritar o pão. Retirar o pão para um prato.
  • Na mesma frigideira, fritar o bife e temperar com sal e pimenta preta. Colocar o bife escorrido da gordura sobre o pão.
  • Na mesma frigideira, fritar o presunto bem seco em papel de cozinha. Colocar o presunto sobre o bife.
  • Misturar 1 colher de sopa de manteiga na frigideira, para fazer o molho, e regar o bife.
  • Entretanto, numa outra frigideira, derreter um pouco de manteiga e corar o tomate. Retirar o tomate.
  • Na mesma frigideira, derreter o resto da manteiga e mexer os ovos. Deitá-los dentro do tomate.
  • Servir o bife com o molho, o tomate com os ovos mexidos e batatas fritas em rodelas ou enfoladas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] «que não podia ligar menos à comida».

[2] Bento da Maia, Tratado Completo de Copa e Cozinha, p. 133

[3] O Cozinheiro Completo, 1855, p. 19

[4] Alfredo de Morais, O Cronista 18/08/956

[5] Alfredo de Morais, O Cronista 18/08/956