PASTEL DE BACALHAU GATE
Como só recentemente tive oportunidade de o provar, não participei na passada e acesa discussão pública, hoje já completamente amainada, em torno do nosso pastelinho de bacalhau. Não é que ele se injectou de hormonas, sob a forma de queijo Serra da Estrela, e se tornou 3XL! Provavelmente foi para agradar a brasileiros, que gostam de tudo com dose dupla de gordura, e a americanos, que preferem dose tripla e até lhe acrescentariam uns chocolate chips ou um molho de calda de ácer. E, indubitavelmente, agradou, porque fazem bicha para o comprar, ali na Rua Augusta, na Casa Portuguesa do pastel de Bacalhau e no Museu da Cerveja.
Eu lá estive na fila para o experimentar. Gostei da massa do pastel, é equilibrada e saborosa. O pastel, com ou sem queijo, é sempre demasiado grande, prejudicando o rácio massa/fritura. Penso que um pastel de tamanho normal feito com aquela massa seria delicioso. Quanto ao queijo que, ainda quente, escorre do pastel tornando difícil lidar com o conjunto, acrescenta-lhe apenas mais sal e gordura, transformando-o num junk food. É uma tendência corrente, transformar a cozinha tradicional em junk e fast food. Atenção, já aí está também o rissol de pizza.
A Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau escreveu a data de 1904 nos seus «brasões», por achar que a primeira receita registada do pastel é a do livro de Carlos Bento da Maia, lançado nessa data. A dita receita chama-se Bacalhau em Bolos Enfolados (p. 119) e aproxima-se do nosso clássico de hoje: leva bacalhau, batata, salsa, leite, ovos, sal e pimenta. Contudo, Carlos Capote, cozinheiro assessor desta casa afirmou, em entrevista ao televisivo Há Tarde, que o pastel leva alho. Minudências.
Foi tão grande a revolta que o pastel de bacalhau com queijo provocou no mundo da cozinha que até Maria de Lourdes Modesto fez uma intervenção veemente contra ele, indignando-se sobretudo pela participação do Turismo de Portugal nesta ideia.
Compreendo perfeitamente a preocupação da nossa MLM com o património. Ela mesmo me disse em conversa: «Se fizeram da cozinha “Parte integrante do património cultural português” (Diário da República, 26 de Julho de 2000), como são possíveis estes atentados?».
Há duas formas de condenar estes pastéis de bacalhau com queijo. A primeira é achá-la uma combinação espúria e destituída de qualquer valor sápido.
A segunda, é simplesmente vê-la como uma forma de profanação de uma especialidade tradicional perfeita, que não necessita de modificações. Neste caso, seriam de igual forma condenáveis todas alterações às versões tradicionais que constituem hoje a base da cozinha portuguesa contemporânea, tantas delas também oficialmente patrocinadas.
O pastel de bacalhau não é exclusivo nosso e, surpreendam-se lá, as suas primeiras receitas incluíam queijo. O queijo que causou tanta polémica no pastel de bacalhau com queijo da Serra da Estrela! Recentemente surgido, tem semelhanças com uma das suas primeiras receitas deste género, constante do capítulo Ramalhete de Iguarias, no Arte de Cozinha, de João da Mata (1876). É a de «Pastelinhos fritos à holandesa. E como o «à» deixaria prever, levam queijo, porém não flamengo, mas sim parmesão. Não fora o queijo, esta receita seria a mais aproximada da nossa actual, até pelo facto de se recomendar um rácio de duas partes de bacalhau para uma de batata.
Buscando também na tradição, nestes dois estabelecimentos os pastéis são servidos com vinho do Porto, o ingrediente que consta da única receita de pastéis de bacalhau presente na Cozinha Tradicional Portuguesa (Minho), de Maria de Lourdes Modesto.
Muito francamente o que mais me preocupa hoje no pastel de bacalhau é ele andar feito em farrapos, sem qualquer tónus muscular. Em geral, têm pouco bacalhau, ou nenhum (substituído por paloco ou escamudo), muita e má batata, espinhas, e péssimas frituras. Como é difícil arranjar um bom pastel de bacalhau e como compreendo o grito de alerta da nossa Maria de Lourdes Modesto que terminou o seu texto com «Ninguém pode tomar conta “disto”?»! Se realmente, e não tenho qualquer dúvida, aquele que consideramos o tradicional pastel de bacalhau anda tão afastado de nós, o que será preciso para o trazer de volta?